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  • Foto do escritorGustavot Diaz

É PRECISO ‘DOM’ PRA SER ARTISTA? (OU MELHOR, EXISTE ‘DOM’?)

Artistas considerados “gênios”, portadores de um dom ou talento especial, muitas vezes manifestam, em seu próprio modo de vida, o oposto daquilo que sustenta a “aura” de gênio. Michelangelo, por exemplo – já em vida chamado “il divino”, dizia continuamente: “– Se soubessem o quanto eu trabalho, não achariam que sou grande coisa!”…. Ainda assim, a crença na existência do dom permanece no imaginário.

BRUNO PASSOS, "Réquiem para Louva Deus" | óleo sobre tela (160cm x 120cm)

BRUNO PASSOS, “Réquiem para Louva Deus” | óleo sobre tela (160cm x 120cm)

Posso dizer que conheci apenas uma ou duas pessoas que se encaixam no conceito – pessoas cuja experiência artística não justifica a notável qualidade de seus trabalhos. Nenhuma deles fez grande sucesso. Já outros nos quais eu não via grande talento, mas sim um grande esforço, cresceram e apareceram, ou seja, se transformaram na pessoa certa no “lugar certo, na hora certa”.

Uma pesquisa acerca das origens do conceito de “dom” seria importante, ainda mais porque sua força extrapola o sentido de genialidade e define também aquilo que consideramos encantador, surpreendente, o que é capaz de nos tirar (mesmo que imaginariamente) da mesmice cotidiana. Mas refletimos hoje apenas sobre o que comumente se entende por “dom”, “talento”, “genialidade” na esfera da arte – títulos que o senso comum parece sempre disposto a oferecer.

E adiantamos a conclusão: o “dom” não existe porque suas manifestações não podem ser dimensionadas de forma objetiva e, portanto não podem ser provadas. Nem as consequências, tampouco suas causas podem ser mensuradas: qualquer genealogia concluiria rapidamente que o conceito não tem origem: viria de um acaso genético? de uma criação sobrenatural? de Deus? Impossível determinar.

As “obras primas” supostamente produzidas por “gênios” ao longo da História, além da maestria, evidenciam, sobretudo, diferenças profundas quando comparadas entre si – tanto nos processos de execução, quanto em relação à estética a que se filiam. Para existir, seria preciso que do conceito de “dom” se abstraísse toda significação de “talento genérico”, ou seja, não poderia nomear senão a capacidade especial de alguns artistas de manifestar o que lhes é mais particular – uma vez que cada obra evidencia propriedades que não podem ser comparadas com outras. Ora, se isso que justifica a obra prima é particular, quer dizer que já pertence ao artista; não seria necessário um “dom” suplementar que o fomentasse de fora. Essa simples lógica faz da existência do dom, de início, uma hipótese absolutamente redundante.

Mas, e se o dom for justamente o que torna o artista “mais capaz” do que outros de expressar isso o que lhe é particular? A pergunta contém o argumento de que, necessitando sempre de um meio para se revelar (no caso das Artes Visuais, esse meio é a técnica), o dom corresponderia à posse de uma “habilidade técnica extraordinária” – e assim mesmo ele é difundido na cultura, como um domínio sobrenatural dos materiais expressivos e procedimentos operacionais do ofício. Tal argumento não considera, entretanto que a técnica em geral (por mais que aquela dita propriamente artística seja fluida, inconstante, indômita) deriva sempre de um processo “objetivo”, cujo domínio depende, portanto, de experiências “objetivas”. Arte não é resultado do acaso.

Experiência: do latim EXPERIENTIA = “conhecimento obtido através de tentativas repetidas”, de EXPERIRI = “testar”; formado por EX- = “fora”, mais PERITUS = “testado, com conhecimento”.

Ser perito, ou ter experiência em um assunto, é tê-lo experimentado ou “testado” muitas vezes; e apenas o seu acúmulo (gerado pela experiência) é capaz de ser expresso. Ou seja, pode o conteúdo do fazer artístico ser de ordem subjetiva; seu processo de execução, porém depende de uma condição objetiva, a saber, um conteúdo só é expresso como resultado da experiência de alguém (o que torna suspeita certa crença pragmatista de que da expressão resultará a experiência; quando, na verdade é o contrário, a expressão advém como produto, não “causa” da experiência) Tendo isso em mente, como admitir então domínio pleno da expressão ao artista que não tenha passado antes pela experimentação, como se supõe que o gênio seja?

Visível versus invisível

Esse é mais um dos equívocos da crença no “talento”, cujo reconhecimento vem sempre acompanhado da dolorosa consciência de nossa própria incapacidade. Quando alguém se destaca em algo em que não me sinto capaz, sou irresistivelmente levado a pensar que ela possui um dom que eu não possuo – afinal, se todos possuíssem a mesma habilidade, ela jamais apareceria como “dom”. Temos aí que o reconhecimento do talento se trata, no fundo, de uma diferença entre capacidades. E, sendo a arte expressão pautada justamente na auto-expressão, tais diferenciações (sempre artificiais) entre capacidades técnico-expressivas dos sujeitos são demasiado explícitas.

A arte é, em grande parte baseada na visão[1], aquilo que Goethe descreveu como “a mais difícil de todas as coisas”[2]. Sua dimensão poética é fundamentalmente subjetiva –una cosa mentale”, pensava Da Vinci em relação à pintura, e também Michelangelo, que afirmou: “o homem pinta com seu cérebro, não com suas mãos”[3]. De impossível aferição, a visão não é uma característica inata, não nascemos “sabendo ver”; seu domínio, por isso, cria uma distância bastante visível entre a expressão daquele que a possui de forma consciente e a dos demais. Um exemplo: um adulto que nunca exercitou o olhar tem no rabisco do “senhor palito” a única expressão do desenho da figura (a mesma que certamente aprendeu na infância). A distância entre seu desenho de palito e o trabalho profissional de um desenhista da mesma idade pode, deste modo parecer gigantesca (posto que o desenho, este sim é passível de se aferir em termos de qualidade). Talvez porque os meios produtivos da arte estejam muito distantes da população em geral, suas produções pareçam sempre eloquentes, ou herméticas demais. Isso talvez explique parte do fascínio que as obras exercem, assim como a própria “mística” no dom.


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Esse equívoco atinge, sobretudo, o próprio suposto detentor do “dom”. Como ele (o gênio), precisa ser retirado da esfera das interações humanas “normais” por se encontrar “acima da média” – ou seja, fora dos balizadores que normatizam a experiência comum, ele mesmo acaba por ser desumanizado neste processo. Aquilo que nos informa a respeito de nossos valores são referentes sociais sempre coletivos; quem não participa deles (seja por estar aquém ou além), não desfruta do pertencimento a uma coletividade. O gênio é au concours, está isento de categorizações e medidas; logo, os julgamentos sobre ele não possuem um critério claro que se possa aplicar a outros, impedindo que ele tenha critérios com que julgar a si próprio. Tanto o já citado Michelangelo, na juventude chamado de “divino”, quanto a criança que desponta como boa desenhista e é supervalorizada pelos pais devido à suposição errônea de que possui um “dom” (não necessitando, consequentemente, de instrução devida e dedicação na área).

Talvez porque a arte trata precisamente do visível, a crença no dom associada a ela seja tão constante. Um mestre de obras, por exemplo, que fosse “gênio” e em sua área tivesse a mesma destreza de Picasso, dificilmente se faria notar, uma vez que seu ofício se baseia em seguir à risca o projeto de engenharia; seu trabalho deve, por princípio, permanecer invisível. Sendo feita para aparecer, a arte é uma fértil produtora de gênios, e muito se tem lucrado por conta disso – dado que tudo que o gênio produz é “genial” (sendo preferível comprar do que parecer tolo).

De volta para conclusão

Retornando à conclusão adiantada no início: nem o produto, nem a origem do dom podem ser devidamente explicados. Vejamos como isso implica uma contradição fundamental. É comum se dizer que um trabalho bem feito é um “trabalho de artista”; ao mesmo tempo, é comum a suposição de que uma boa obra demanda muito treino, disciplina e dedicação. Mesmo esses saberes sendo corriqueiros, todo artista um dia passa pela perplexidade de mostrar um trabalho e ouvir como resposta: “– Maravilhoso! Você realmente tem um dom!” Ora, ou uma obra é fruto do esforço, ou é produto de um dom, não pode ser ambos ao mesmo tempo. Tal contradição demonstra como, devido à falta de origem, as manifestações do dom perdem um sentido coerente; e, de outro modo, como suas manifestações difusas abrem margem para a dedução aleatória das origens.

 

[1] Importante considerar a distinção entre visão x olhar, que tratamos em outro artigo.

[2] “Qual a mais difícil de todas as coisas? A que imaginas ser a mais fácil: ver com a visão dos teus olhos. O que está diante deles.” ( J. W . Goethe. XENIEN. Obras Póstumas).

[3] Em outra situação, Michelangelo teria afirmado que “o compasso [com que se aferia as proporções para a esculturas] está no olho”.

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