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  • Foto do escritorGustavot Diaz

Como desenhar pode ser uma prática subversiva

A cada bloqueio que sofro no Facebook (esta é a quinta vez), minha primeira sensação é de incompreensão. Depois de um mês bloqueado, é impossível não relativizar a importância desta rede social que, vista à distância é bem insignificante mesmo. Porém preciso dela para exercer minha profissão, a qual me leva de tempos em tempos a ser censurado por um algoritmo: sou artista visual e minha temática é a representação do corpo. Além disso, há 15 anos ministro oficinas de desenho da figura humana com modelo vivo: a nudez, portanto, está tão presente em meu trabalho, onde ela é de tal modo naturalizada – que o cinismo da “lógica” dos algoritmos sempre me deixa confuso.

HANS HOLBEIN, 1532 | Study of Right Hand of Erasmus of Rotterdam and Portrait Study | ponta de prata , giz preto e sanguínea (20 × 28 cm) Louvre, Paris

HANS HOLBEIN, 1532 | Study of Right Hand of Erasmus of Rotterdam and Portrait Study | ponta de prata , giz preto e sanguínea (20 × 28 cm) Louvre, Paris

Quando uma imagem ou perfil são excluídos do FB, quer dizer que foram julgados por algoritmos, os chamados robôs. É claro que cometem erros – como a exclusão recente do desenho de Hans Holbein (ao lado) por considerar que a imagem descumpria a “política de publicações”. Mas no geral, os algoritmos acertam. É aí que reside o problema. Eles são filtros que calculam sob sigilo cerca de 100 mil variáveis de nosso comportamento na rede a fim de ranquear o que é “mais interessante” para cada usuário. O que você vê não é exatamente as publicações de seus amigos, mas o que o algoritmo filtra. Essa medida atrai o público, mas também torna seus interesses discerníveis para os anunciantes. Como disse um amigo poeta: “o Facebook aproxima os distantes e distancia os próximos”. Outro filtro é quando usuários eventualmente se sentem incomodados com publicações e as denunciam (chamado, muito apropriadamente, de “denúncia reativa”).

Qual algoritmo te define?

A censura à nudez se origina quando esta é tida em oposição ao “pudor”, à “decência”, aos “bons costumes”: a velha noção de moralidade social. Isto está implícito nos padrões de comunidade do Facebook, sob a tentativa de conciliação de dois conceitos: “diversidade” e “segurança”. Tais temas– altamente valorizados na contemporaneidade, tornam-se incompatíveis se considerados de forma estereotipada, como é o caso do Facebook, que restringe de antemão a nudez a fim de não ferir alguns públicos mais “sensíveis” devido a sua “bagagem cultural”. Ora, pluralidade e respeito às diferenças são inconciliáveis com uma noção de segurança que se restrinja à bagagem cultural e à sensibilidade conservadoras: essa é a receita para excluir a diferença antes que ela se torne incômoda. Noutras palavras: tolerar a intolerância. Afirmando respeito à diversidade, enquanto garante a tradicional segurança dos valores conservadores da moralidade, a rede social presta um desserviço à liberdade de expressão. O mais grave é a associação entre nudez e pornografia (“o Facebook tem uma política rígida contra o compartilhamento de conteúdo pornográfico e impõe limitações à exibição de nudez”). Sem dissociar uma da outra, acaba por confundir ambas na mesma reprovação.

EDUARDO NARANJO.

EDUARDO NARANJO. “Dibujándose moscas”, 1984 | Técnica mista sobre painel (105 x 81 cm), Colección Rockefeller, NY

É o caso da exclusão da foto de uma indígena com os seios à mostra da fanpage do Ministério da Cultura – pelo que a rede recebeu um processo do Estado brasileiro sob alegação de censura. Ou quando a ativista Luca Franca foi bloqueada pelo meme em que dispunha lado a lado – uma foto sua com os seios à mostra num protesto contra a violência à mulher (censurada como “imoral”), e uma foto da negra “globeleza” dançando nua (constantemente veiculada na mídia). Outro caso flagrante que revela a arbitrariedade da censura à nudez é o do deputado João Rodrigues (PSD), que recentemente fez um discurso contra a performance La Bête do artista Wagner Schwartz no MAM: “Não consigo acreditar que tenha algum pilantra, algum vagabundo dentro desta Casa que aplauda isso. Porque, se tiver, tem que levar porrada, tem que levar cacete, para aprender. Bando de traidores da moral brasileira, tem que ir para a porrada. Nós não podemos mais aturar isso. Se você apoia patife, se você apoia tarado, é na tua cara que eu vou dar”, disse ele no plenário da Câmara Federal. Esse mesmo deputado foi aquele flagrado recentemente assistindo vídeos pornográficos no plenário da mesma Câmara…

Falar sobre a hipocrisia desses critérios soa redundante. Qualquer adolescente facilmente acessa um dos 100 bilhões de vídeos pornôs assistidos anualmente, a maioria via streaming gratuito – e sabe disso melhor que seus pais. O documentário Pornocracy: the new sex multinationals (tem na Netflix) informa sobre a atualidade dessa indústria antiquíssima. Mas o que mobiliza o cinismo e a hipocrisia? Essa questão, cara à filosofia contemporânea, está muito bem representada no Brasil por Vladmir Safatle (aconselho o livro Cinismo e Falência da Crítica) e tem demandado uma verdadeira atualização das teorias críticas.

“Obsceno” versus “Metafórico”

YOEL DIAZ GALVEZ,

YOEL DIAZ GALVEZ, “Fragmentos naufragos, estibadores” | técnica mista sobre tela, (160 cm x 160 cm)

Desapegar-se de preconceitos, porém, pode ser mais simples do que parece e por vezes está aquém da Filosofia. Uma simples sessão com modelo vivo – experiência que recomendo a todos, é suficientemente instrutiva a respeito de como a nudez pode ser absolutamente livre de “segundas intenções”. Diante de um corpo nu que será “representado” em desenho, pintura, modelagem ou qualquer outra categoria artística, são tantos os problemas de ordem plástica e estética (anatomia, proporção, luz e sombra, composição, expressividade, etc) que não sobra espaço para “malícia”, ou seja lá o que censores pervertidos veem no corpo. O exercício do modelo vivo (ou da performance e do ativismo) que se vale da corporeidade como suporte ou temática combate justamente a perversão que comercia com a objetificação do corpo. Pode, inclusive, ser uma forma qualificada de educação quando logra excluir a nudez do discurso sexual que a censura teima em inscrevê-lo. Abordar o nu na arte é uma maneira de pensar as dimensões plástico-expressivas da fisicalidade, a sexualidade para além do gênero, a valorização da liberdade individual e questionar o controle ideológico dos corpos. A nudez, por sua vez, não é uma referência imediata ao sexo, assim como sexo não é imediatamente uma referência à pornografia.

Obsceno é “tornar real alguma coisa que até então era metafórica” (Baudrillard), ou seja, retirá-la da “representação”, do campo da metáfora. Não por acaso, o maior exemplo disso é a pornografia, que elimina todas as dimensões da relação entre os seres em função do gozo imediato – mas sem prazer. A eficácia da nudez pornográfica (motivo de sua pobreza) se dá na medida em que ela simplifica o sexo a uma forma brutal de exploração do corpo alheio, sem qualquer simbolização; isto é, na medida em que reduz o corpo a objeto de domínio.

TIZIANO,

TIZIANO, “Amor Sacro e Amor Profano”, 1514 | óleo sobre tela. Galería Borghese, Roma

A nudez na arte é exatamente o contrário. Desde tempos imemoriais, ela compõe o repertório artístico como uma “forma de arte” (Kenneth Clark) capaz de instituir a mediação (simbólica) – cuja ausência define precisamente o conceito do que é obsceno. Mesmo quando tematiza perversões, como a pedofilia, a arte se refere sempre a um processo de mediação entre o que seria o “real” (no caso, uma situação efetiva de violência ao menor) e as formas imaginárias de sua concepção: assim a representação artística põe em jogo não a perversão em si, mas seu correspondente linguístico – com o qual podemos dialogar, questionar e fazer a devida crítica, quando necessário. Os artistas do passado conheciam perfeitamente essa distinção: uma obra significativa é Amor sagrado e Amor profano (1514-1516), onde Ticiano opõe duas formas de manifestação amorosa, sendo a forma profana identificada à mulher vestida e a sagrada com a figura nua.

Como se a tutela moral já não fosse em si mesma uma perversão condenável, carrega ainda uma curiosa contradição. A censura disfarçada de “moralidade” que anda nas redes sociais e nas praças (requentando em panelas novas a velha “patrulha ideológica”) acaba por realizar em suas manifestações a obscenidade que critica nas obras artísticas. Eliane Brum, no melhor artigo que já li sobre o assunto, discorre sobre como esses movimentos são produto de uma afasia cognitiva: se tornaram incapazes de perceber a metáfora (figura retórica fora da qual os fatos carecem de significação). Ao retirar a arte do campo metafórico, ao não compreender que ela trabalha com “representações”, e ao tomar a sexualidade tematizada nas obras como “pornografia”, a própria crítica se faz obscena. Mais emblemático que um ex-ator pornô liderando esse movimento por moralidade, impossível.

O mesmo fazem cotidianamente os jornais, especialmente programas sensacionalistas de matérias policiais, colocando em ato o que deveria ser apenas “relato” (sem esquecer que em sua maioria, esses programas objetivam criar um público telespectador que se converta em moeda eleitoral). Da mesma forma que os movimentos censores, essa imprensa que “cria fatos” por meio da sobre-exposição, além de descumprir seu papel de mídia – que é “mediar a realidade” e apresentá-la como informação (ou seja, na forma da linguagem) – essa imprensa torna efetiva a obscenidade que critica nas reportagens. Opera, assim um perigoso hiper-realismo baseado no apelo ao choque.

Revezes

CARLOS GOMEZ MOJICA, “The Perpetual Fashion of Skin”, 2014 | carão sobre placa (48 x 71 inches)

CARLOS GOMEZ MOJICA, “The Perpetual Fashion of Skin”, 2014 | carvão sobre placa (48 x 71 inches)

Tal patrulhamento obsceno tem tido revezes, no entanto. O mais notável foi o Banco Santander ter sido obrigado pelo Ministério Público a realizar exposições sobre diversidade, como retratação por ter encerrado a exposição Queermuseu antes do prazo. A punição foi baseada num extenso parecer “técnico e racional” elaborado pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (órgão do MPF que zela pelos direitos constitucionais e subsidia os procuradores regionais). Suas conclusões evidenciam a ausência de base comprobatória às alegações de pedofilia e zoofilia – tão compartilhadas meses atrás, mas que hoje parecem calúnias retrógradas de fanáticos de plantão nas redes sociais.

O parecer da Procuradoria é uma bela demonstração de Direito esclarecido. Em síntese, discorre acerca do teor legal dos fundamentos do poder de livre expressão, caracteriza os crimes de natureza sexual contra crianças e adolescentes e o sistema de classificação etária. E conclui: somente é pedofilia quando há elemento subjetivo que caracterize “intenção do agente em satisfazer a lascívia própria ou alheia, utilizando-se, para tanto, de uma criança ou adolescente. Ausente tal intenção, resta descaracterizada a conduta criminosa” (p. 25).

Além do amparo legal, os inumeráveis debates realizados acerca desses temas, assim como a organização de um sem-número de coletivos artísticos – geraram uma reflexão em nível nacional capaz de vertebrar mudanças significativas em nosso paradigma de pensamento. Esse é o principal revés sofrido pelo movimento conservador do MBL, que é afinal o destino de todas as reações conservadores: passar à história como uma estranha alucinação proveniente do intelecto atrasado e da ignorância. Serão sempre os assassinos de amanhã do “velhote inimigo que morreu ontem”.

ZIN LIM,

ZIN LIM, “Figure#D01” | carvão sobre papel (24×18 in)

Em resumo, há razões suficientes para as redes sociais com atuação no Brasil repensarem seus algoritmos e políticas. Afinal, devem se adequar aos princípios normativos do país em que atuam, e considerar o debate nacional com boa vontade. Já em 2015, a assinatura da Agenda 2030[1] das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável reconhecia o “papel crucial da diversidade cultural para resolver desafios do desenvolvimento sustentável”. De fato, para que esse papel seja cumprido a Convenção da UNESCO para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2016) propõe a fórmula correta: “As mídias públicas podem ser cruciais para fomentar e impulsionar a diversidade das expressões culturais”. Mas reconhece que “Não pode haver diversidade de mídia sem liberdade de mídia”. Agora sim a equação funciona: é a liberdade que impulsiona a diversidade.

Restringindo o conteúdo das postagens com a justificativa de gerar “segurança” (a usuários conservadores), o Facebook cria um ambiente inseguro para a arte e para os artistas. Meu caso é um exemplo vivo: ao coibir a veiculação (mesmo paga) de anúncios de cursos e oficinas com os quais me sustento; ao censurar imagens de minhas aulas e fotos das modelos com quem trabalho, a rede difama minha profissão como imoral, além de restringir meu alcance ao meu público. Tenho muitos amigos em situação idêntica; o que, creio, configura um processo sistemático de censura.

A origem desta crise é o comportamento gerado pelos algoritmos das redes sociais, que colocam em contato apenas aqueles que se afinam entre si”.

Algoritmos e censura

A frase acima, de Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural, aponta algo fundamental: os algoritmos não apenas selecionam e segregam – têm também a função oposta de agregar e unir os usuários de modo a conectar os semelhantes na web. Assim é que segmenta o público tornando-o facilmente assimilável pelos anunciantes… que então tornam-se novamente reféns de outros algoritmos de indexação de interesses (como os anúncios do Google que aparecem em todo lugar depois que você pesquisa produtos semelhantes). Quando você pesquisa a origem da palavra “mandarim” e começa a ver anúncios de pacotes de viagem à China, quer dizer que os algoritmos do Google analisaram suas pesquisas e direcionaram seu perfil às agências de viagem que pagam por anúncios. É claro que esse direcionamento é em geral interessante aos usuários – que de qualquer jeito preferem adicionar nos perfis amigos que pensam como eles, assim como tratar de seus assuntos de interesse. Contudo, isso faz com que toda informação gire sempre nos mesmos círculos – reafirmando postulados, excluindo diferenças e sedimentando preconceitos.

ERIN MILAN,

ERIN MILAN, “I attend your baquet as wine attends”, 2016 | óleo sobre tela (55″ x 36″)

Essa dupla função algorítmica pode representar uma metodologia excludente. Hoje sabemos que, mais do que possuir, nós “somos um corpo”. A arbitrariedade da separação entre “corpo” e “mente”, derivada de uma longa tradição no pensamento ocidental, é hoje amplamente questionada e seus efeitos cada vez mais percebidos como prejudiciais. A repressão da sexualidade e da nudez, a repressão do corpo – longe de preservarem a “moralidade” e a “família” – é, em primeira instância, a repressão do próprio ser em suas múltiplas manifestações.

A seleção dos algoritmos vai tornando a nudez, ao menos na web, conteúdo exclusivo de sites dedicados à pornografia e ao sexo pago. Ou seja, como na vida real – onde o sexo reprimido retorna como recalque e onde o silêncio sobre a sexualidade faz com que meninos e meninas usufruam traumaticamente de seus corpos – a pretensa “web segura” das redes sociais tem o efeito de confundir e segregar. Isso contribui para a mercantilização da nudez porque a marginaliza, ou seja, a expulsa de um espaço “seguro” para um terreno que não lhe é próprio (dos vídeos pornô). A pornografia, de fato, se apropriou do corpo – da mesma forma que as igrejas se apropriaram da transcendência, transmutando o sagrado em moeda de troca e adoração.

Arte é território do corpo. Uma vez que nela subsiste o livre trânsito entre sagrado e profano (articulação que na Idade Clássica era operada pela Religião), a mediação entre as diversas dimensões que o corpo encerra encontra na arte um espaço privilegiado. Sendo o campo por excelência da linguagem – onde todas as articulações são possíveis, não é senão na arte que o corpo deve encontrar espaço adequado para ser o que é – liberto dos impedimentos da censura, da pornografia despotencializante e da financeirização do fetiche.

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Sugestões de leitura:

“Queermuseu: Arte e Moral” | AntiCast (podcast por Ivan Mizanzuk, Gustavot Diaz, Marcos Beccari e Clarice Sena) Toda nudez será castigada (Bravo!) As anatomias do belo (Bravo!) Uma nova politização da Cultura? (por Fernando Marcelino) Gays e crianças como moeda eleitoral (por Eliane Blum) Censura | Autocensura: moralismo contra a arte (Select)

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[1] Alguns dos temas centrais da Agenda 2030 são: “O reconhecimento e a proteção da liberdade artística são essenciais, não apenas para o ser e para a prática criativa dos próprios artistas, mas também para os direitos de todos os profissionais da cultura.” “As liberdades fundamentais são um ingrediente essencial do bem-estar de cidadãos e sociedades, para a dinâmica do desenvolvimento social e para a estabilidade dos setores das artes e das indústrias culturais e criativas”. “As restrições ao fluxo artístico e as perdas econômicas privam os artistas de seus meios de expressão e sustento, e criam um ambiente inseguro para todas as pessoas engajadas nas artes e para o seu público”.


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