Gustavot Diaz
Figura Contemporânea | Retrato
Dentre as expressões artísticas, o Retrato é, sem dúvida, a mais icônica. Utilizado por metonímia como sinônimo de “representação”, já no período anterior à era imperial, os romanos cultivavam na retratística um impressionante realismo. Este fato constitui um curioso “anacronismo”, se supormos que o ferramental e a disposição subjetiva realistas tenham se dado apenas a partir das condições criadas no Renascimento, ou apenas no século XIX (conforme aprendemos com Erich Auerbach). Porém, escritores da antiguidade já dedicariam estudos ao tema, tamanha era a autoconsciência do significado do Retrato – tanto na esfera pública, quanto privada. Essa pregnância temática garante-lhe autonomia de categoria plena dentre as expressões artísticas, e assim como o “nu” – o Retrato pode também ser considerado uma “forma mesmo de arte” (vide Kenneth Clark).

Retrato romano do imperador Augustus (63 a.C/14 d.C.)
Mais do que outras, porém, a retratística traz consigo um perigo: a confusão entre os sistemas de “representação” e “apresentação”. Com seu poder de atração e capacidade de trazer à tona características físicas e psicológicas, retratados normalmente confundem-se com seus retratos. De um retrato de fulano, pode-se dizer: “é fulano”. Um “retrato falado” pode incriminar um suspeito de crime. Em seu próprio retrato, os sujeitos se reconhecem – quer dizer, identificam-se a tal ponto que o retrato passa a funcionar como referência da pessoa, e não o contrário. Vide a obsessão contemporânea dos selfies, onde a imagem se torna o objeto da experiência, e não o retratado (de fato, a imanência da presença do retratado na imagem propicia a confusão).
Vemos exemplos amiúde na literatura, como o famoso O retrato de Dorian Gray (1890), no qual Oscar Wilde concebe um retrato que se transforma em espelho moral do pintor. Outro exemplo, de grande força e sensibilidade, está na segunda parte do livro O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo (1951), denominada “O Retrato”. Nestes capítulos, Veríssimo revela o quanto a imagem se impõe à consciência dos sujeitos, afirmando a autoridade do retratado por meio da solenidade (ou aura) própria à pintura, oriunda de certa força misteriosa presente na efígie. No livro, através de seu retrato pintado a óleo pelo amigo Pepe, o Dr. Rodrigo Cambará – personagem central da obra – conjuga uma aura quase mágica, cujo espectro ronda constantemente ao longo de algumas centenas de páginas, num quase ensaio de constituição psicológica.

ERMILO ESPINOSA TORRE | óleo sobre tela
Estranhamente, na medida em que cria uma esfera de poder ao retratado, o retrato exaure o artista que o executou: o pintor espanhol Pepe passa a desconstruir-se enquanto sujeito após tê-lo pintado. O retrato é a sua “obra-prima”; seu sucesso jamais se repetirá, e tudo o mais que produz sofre por efeito de comparação. Constatamos esse efeito “mágico” do retrato também nas antigas “estátuas jacentes” – esculturas tumulares (bastante comuns a partir da Idade Média) onde o morto era tomado como modelo. Deste modo, a estátua funcionava como um substitutivo de sua presença física, com a finalidade de perpetuar sua autoridade moral no caso das efígies de reis, imperadores, etc.
“Todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, e não do modelo”.
Esta frase de Oscar Wilde mereceria um complemento a propósito: “Todo retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, e de como ele vê a si próprio…”, ou seja, deriva de uma percepção subjetiva, uma realização imaginária do outro, não sendo portanto justa a afirmação de que o “retrato de fulano é fulano”.
O que o desenho de Retrato faz é apresentar de forma organizada as percepções do desenhista; trata-se sobretudo da apresentação de uma forma até então inexistente (e que por isso não pode representar ninguém). Para além da técnica necessária, deve-se saber que o desenho não “representa” o desenhado, e a partir disso, assumir que se trata de elaborar plasticamente a visão de seu objeto de referência: seja o retrato de um parente, de um amigo, ou um autorretrato – será sempre apenas um Retrato.

ANNEMARIE BUSSCHER, 2011 |”Self Portrait XII” (óleo sobre tela, 160×120 cm)
A origem latina da palavra é retrahere, onde re = “para trás”, e trahere = “tirar, puxar”. A união dos dois termos indicaria algo como “tirar fora” uma imagem. Este significado, se lido pelo sentido de mimesis (espécie de duplo do modelo, uma “cópia” dele) faz com que o Retrato perca toda a força expressiva, senão sua própria substância artística. Mais do que tirar de um lugar e por em outro, um Retrato é resultado da reconstituição de traços que imaginariamente compõem uma percepção projetiva do artista em re(L)ação aos sujeitos de seus afetos: nunca deve ser reduzido à aferição técnica de medidas proporcionais.
Enquanto percepção subjetiva do artista, o Retrato não tem propriamente o poder de “representar” – mas o de propor indicações ou instâncias de “revelação”. Noutras palavras: uma posição política pode nos representar, por exemplo. Nela eu reconheço, senão a totalidade, ao menos parte do que sou, e posso me identificar pela complexidade de uma plataforma de proposições econômicas e sociais. Não somos somente aparência; não podemos ser efetivamente representados quando reduzidos através de projeções planas feitas de tinta. A força expressiva vem na medida da mímese, mas sua realização depende de uma série de contingências não subsumidas pela técnica – quando esta é superada no imprevisto do estilo, nas lacunas da intenção artística. Ai é que a “verdade” do retratado se apesenta e se mostra: o lugar em que certa verdade representativa de nós mesmos aparece é justamente onde não se espera.
Segue breve seleção de retratos contemporâneos (encontre aqui mais imagens):

OLIVIER DE SAGAZAN, óleo sobre tela (baseado em fotografia de performance do artista)

TANER CEYLAN, 2009 | “Still-life” (óleo sobre tela, 140x200cm)

ELOY MORALES, 2013 | “Francisco with Butterflies” (óleo sobre tela, 160×160 cm, em colaboração com o performer Paco Nogales)

PATRICK RIGON, 2015 | “O véu” (óleo sobre madeira)

GOLUCHO, 2006 | “Retrato de insomnios” (lápis e aguada, 104 x 140 cm)

JAVIER ARIZABALO | (óleo sobre tela)

DORIANO SCAZZOSI | “Autorretrato” (óleo sobre tela)

GOTTFRIED HELNWEIN, 2011 | “The Disasters of War 28” (óleo e acrílica sobre tela) 201 x 163 cm)

COLIN CHILLAG, 2012 | “Grandma Grandpa” (óleo sobre tela, 24 x 18 in)
Imagem da capa: OLIVIER DE SAGAZAN | óleo sobre tela
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