Gustavot Diaz
[labPROCESSOS] lab#1: “O tempo das imagens”
A imagem é uma extraordinária “montagem” – não histórica – de tempo” (Didi-Hubermann, 2000, p. 16)
O objetivo do labPROCESSOS é a criação de um espaço de debate permanente – para além das edições do curso Processos Poéticos, que ofereça continuidade de estudo aos participantes. O que segue é um resumo do conteúdo do primeiro encontro – lab#1, que ocorreu em 01/10/22. A segunda edição será em 03 de dezembro. (Os vídeos gravados com os encontros na íntegra podem ser adquiridos, vide informações ao final)
Considerações acerca dos limites da imagem e sua temporalidade: até onde toca o mundo enquanto objeto, até onde enquanto símbolo? Como as imagens fazem o tempo e como são feitas por ele. Anatomia das imagens – se as imagens dizem, que querem dizer?
Esse famoso filme é de Dziga Vertov, cineasta comunista, de vanguarda, muito influenciado pelo artista e poeta Maiakovski no início do século XX. Vertov ouve o famoso discurso de Lenin de 1918 que defendia o cinema como meio revolucionário de divulgação da União Soviética; autocontínuo, ele se apresenta ao Comitê de Moscou e se coloca à disposição da Revolução, assumindo a redatoria do primeiro cinejornal de atualidades do Estado Soviético (Kinonedelia), precursor dos jornais televisivos. Constitui uma enorme atividade, e uma produção técnica experimental que divide com publicações teóricas, como o manifesto A revolução dos kinoks (cine/olho) de 1922 – onde propõe uma ideia central de construção imagética baseada na articulação de quatro elementos: olho/câmera/realidade/montagem.
Para Vertov – e esse é um ponto importante para nós, a montagem é a alma do filme, o motor da sua estética e do seu sentido. O cinema devia se basear no contato direto do olho da câmera com os eventos da realidade – isso cortava os laços com a produção tradicional que dependia sempre da teatralidade; o interesse de Vertov era a produção de uma experiência real, a qual denominava “cinessensação do mundo”. Um Homem com uma câmera (Tchelovek s kinoapparatom), de 1929 é sua obra mais bem acabada, onde confere autonomia à imagem em relação aos espectadores e ao próprio filme – em diversos momentos vemos a câmera apontada para a própria câmera que filma, ou seja, olhando o próprio espectador. Ao contrapor a máquina, os mecanismos técnicos da própria câmera (diafragma obturador, etc) aos mecanismos de Moscou, ele cria uma metáfora da cidade como gigantesca produtora de imaginários, como se ela fosse um grande olho que produz as imagens e os sujeitos (interpretação minha).

Toda a produção de Vertov se opõe ao cinema tradicional, e se dirige para o “cinema-verdade”, uma teoria que pressupunha que o tema do cinema fosse os fenômenos da realidade em si mesmos – se opondo a que a ficção narratológica da literatura e do teatro penetrem o espaço cinematográfico. Para ele, a encenação do drama era falsa e associada ao mundo romântico burguês. Nos seus filmes não há subjetivismo: o tempo das imagens é o tempo da vida. O tempo diegético[1] deseja ser o mesmo tempo real do espectador; não é construção da narrativa, baseada em atores e num tempo e espaço cênicos.
Experiência do tempo e tempo da experiência
Manteremos a seguinte hipótese de trabalho: o tempo deriva das imagens. E, uma vez que toda noção de tempo é sucessiva, ele depende então de diferenciações na expressão imagética: assim, tempo e imagem se confundem numa dialética onde um se dá a ver por meio do outro. Parece contraintuitivo pensar que a imagem determina, seja de que modo for, a visão; mas lembro que o olho não produz imagens. Imagens são estímulos aos quais o olhos reage: elas são uma reação do olhar, uma reação do olhar contra as coisas, ou seja, uma consequência, mas que cria sua causa. Por extensão, podemos dizer que a imagem participa da criação do sujeito (de nossa experiência subjetiva). Sem imagens não há coordenadas; sem coordenadas não há campo simbólico – o que equivale dizer: sem imagens, não há experiência (e, logo não há sujeito da experiência). O artista Felipe Tassara diz que no teatro, o tempo não nos pertence – pertence ao espetáculo; já numa exposição artística, diferentemente, o tempo estaria à disposição do público, uma vez que podemos circular diante das imagens a nosso bel prazer. Mas, será que a gente possui realmente o domínio do tempo sobre as imagens?
Não seriam elas a impor coordenadas, e estas coordenadas uma experiência temporal sine qua non?
Sobretudo, o tempo deriva das imagens porque elas produzem experiências. Como o fator que nos mobiliza é o afeto (e não conceitos abstratos da lógica) e as coordenadas de uma imagem afetam os sentidos – ela fisicamente incide sobre a permeabilidade dos órgãos sensoriais; é assim que criam afecções – as quais, por isso recebem o nome de estética, do Grego aisthánesthai, “perceber, tomar conhecimento” (por sua vez “perceber” vem do latim percipere, “pegar, agarrar”). E quando se dá sentido a um afeto, o que resulta é experiência (por isso as imagens criam experiências). Quando a imagem ativa a visão mediante estímulo dos sentidos, ela produz dialeticamente a visão (que não pode dar-se no vazio, tampouco a imagem pode existir sem ela).
A experiência visual decorrente leva adiante o campo perceptivo do espectador, e é assim que ela esgarça os limites do possível e inclui no mundo a imagem do impossível, do inimaginável que ainda não tem forma.
Enquanto síntese, a arte vai funcionar como coordenadas sensorial e conceitual. Embora derive do termo imitari, ela não copia, tampouco reproduz a realidade – ela emula as coordenadas constitutivas da experiência. Imprescindível lembrar que a informação que temos da realidade não passa de coordenadas simbólicas que organizam “uma experiência de realidade”. Tais coordenadas simbólicas – fundamentalmente imagens – nos dão uma experiência bastante instável de realidade, baseada fundamentalmente em suposições, pressupostos, crença e ideologia. De fato, é uma experiência sujeita às injunções desviantes dos sentidos, experiência que se desagrega a cada instante, e volta a se agregar de outro modo com o passar do tempo, etc. Ou seja, nosso contato com a realidade é um vínculo muito precário. Por isso as imagens têm tanto poder – elas possuem uma função mobilizante. Seja através da identificação, seja através da rejeição ou do sublime (“sublime” que é uma espécie de mistura de todas as reações), a imagem incide na formação de nossa subjetividade.
E se elas impactam assim os processos de subjetivação intervindo na constituição do sujeito, seria o caso de pensar que elas também criam mediante certo ritmo de crescimento, digamos assim. Quer dizer, elas criam também a velocidade de processamento do olhar: o tempo do olhar. Esse tempo se expressa numa forma bem conhecida: a narrativa. A narrativa tem o poder de produzir afetos, de criar laços. Só que, aparentemente não é a visão que gera a crença no que se vê, é o contrário: a crença é que faz a visão. Como na história mítica das caravelas invisíveis, depois que o xamã enxerga as caravelas, ele conta aos demais: eles então veem, mas só porque confiam e acreditam nele. O conceito vem antes do olhar: está presente nas próprias imagens, mas antes mesmo que as vejamos. Isso é o que nos possibilita ver.
Sem-tempo presente
Quando as imagens eram criadas por artesãos numa superfície branca, nada do que punham sobre ela existia – tudo deveria ser criado: encontrar com o carvão ou a argila uma síntese linguística que formulasse o que queriam, por exemplo, um modelo qualquer diante deles (o qual, sempre oculta em si um conceito qualquer). Nessa época, o tempo da produção era o tempo da vida; o tempo do artesão era o mesmo da imagem, o tempo da imagem era o mesmo do modelo. Chegou, então a vez das máquinas fotográficas que “registravam mecanicamente” os modelos produzindo aquilo que também chamamos de imagem, mas cujo processo, tanto quanto seu produto são completamente diferentes daquele produzido diretamente na artesania das mãos: a operação de captação se compõe da apropriação de um traço físico do objeto (a luz real que em dado momento incidiu sobre ele), e não demanda a criação da síntese ou solução plástica, quer dizer, o fotógrafo não é sujeito a ter de construir do branco do papel as coordenadas da linguagem visual. Ele já parte do que resulta da ação da luz física incidente sobre a película. Pode regular anteriormente a captação, assim como editar posteriormente durante ampliação, a revelação ou a impressão, mas não constrói linguagem, a não ser por mediações, operando após a máquina.
Como a visão é inseparável da organização das práticas sociais, estas haviam modificado de tal forma os modos de ver na Europa do século XVIII, que quando a fotografia surgiu já pouca novidade trazia, a não ser em seus aspectos práticos. Jonathan Crary faz um levantamento dos aparelhos ópticos em circulação na França antes da máquina: câmara escura e câmara clara, taumatrópio, fenacistoscópio, zootrópio, diorama, caleidoscópio, estereoscópio, estereografo, daguerreótipo, negatoscópio e o espelho negro (Crary, na verdade defende que as condições à recepção fotográfica já estariam pressupostas na Europa desde, pelo menos, o século XVII com o advento da “câmara escura”). Não somente apta à recepção da fotografia e de outros modos de percepção da imagem, com o advento da foto a visão tomou um protagonismo na cognição bastante específico:
As bases do espetáculo e a “percepção pura” do modernismo abrigam-se no território recém-descoberto de um espectador plenamente corporificado, mas o triunfo final de ambos depende da negação do corpo, de suas pulsações e seus espectros, como fundamentos da visão. (grifo meu) JONATHAN CRARY
Justamente porque a produção não processava no tempo do corpo, um tempo que a experiência do produtor e do modelo podia suportar, o domínio da visão excede o corpo, na era da produção técnica da imagem.
Hoje, esse cenário está hipertrofiado. A inteligência artificial (IA) instalou uma perspectiva drástica: o absolutismo da ilusão. As Computer Generated Imagery (CGI) concorrendo com o olho (e, portanto, com o corpo real) tem um problema para resolver, sintetizado na seguinte frase: “se você pode dizer que é CGI, é um CGI ruim. Em outras palavras: sua invisibilidade é a prova de seu sucesso.[2]” Se a eficiência está no mascaramento da própria ilusão (a invisibilidade é “prova de seu sucesso”), entramos numa época em que a absoluta efetividade da ilusão – consequentemente, da suspensão da crítica – está no horizonte da tecnologia. Mas há um porém, quanto às imagens produzidas automaticamente, e aqui recorremos a um mito grego para exemplificar – o mito de Perseu e Medusa. Perseu provavelmente fora o primeiro artesão da História mítica. Quando Athena lhe sugere a estratagema de olhar para a górgona Medusa por meio de um espelho, ali estava encenado pela primeira vez a “realidade virtual”. Encenada porque sempre aconteceu na dimensão psíquica: as imagens existem para não vermos o Real, para que nos preservemos dele. O reflexo de Medusa no espelho de Perseu era uma encenação desta condição ontológica: de novo (mas agora virtualmente) uma imagem mediando a relação com o Real. Em resumo, as imagens encenam a si mesmas; ou seja, encenam a condição de toda imagem. Quando a gente vê, também está performando o ato de ver – daí que Marcos Beccari vai insistir tanto que as imagens dão a ver não elas mesmas, mas o que está ausente delas: o enquadre do espectador (e o próprio espectador, que é condição da imagem, mas não aparece nela).
As imagens são olhos que não veem: nós é que – vendo-as, as dotamos de visão, ao passo em que nos inscrevemos simbolicamente através delas (assim somos informados de nós mesmos). Elas nos mobilizam, sustentam nossas fantasias e desejos inconscientes, que só podem operar onde o simbólico existe; não podemos desejar senão através dele. Aí está o problema com as CGI: o computador não possui inconsciente. Diante dele, nada é falha, nem acerto pois não está a produzir “sentido” – nossos olhos é que, retrospectivamente, conferem sentido às suas imagens.
O tempo do ontem nas imagens do hoje
The Clock, do artista suíço-americano Christian Marclay, é uma videoinstalação com 24 horas de duração, composta por milhares de cenas de cinema e tevê que fazem referência ao horário do dia. A obra recebeu o Leão de Ouro na 54ª Bienal de Veneza, em 2011, e desde então tem levado milhares de visitantes a dezenas de museus ao redor do mundo.
Marclay é músico, na verdade – portanto mais que habilitado para trabalhar com esse universo da temporalidade. O filme cria uma expectativa permanente porque ele é orquestrado pelo tempo, pelo passar do tempo, que vai abrindo inúmeras situações, que no entanto não tem conclusão – senão imaginária. A imagem é produto e produtora do tempo. Se o olhar é o maestro que rege o tempo – o olhar depende das imagens, como o maestro depende dos instrumentos. Não há como fugir das horas – como pensamos normalmente o cinemas, um entretenimento que nos faça o tempo passar porque a gente se esquece dele; ali vc a cada minuto é informado do tempo real que passou diante da tela, as imagens do tempo o “tempo do tempo” se apresentam.
Numa entrevista de Hubert Damisch, questionado se deveríamos continuar nos perguntando sobre o que é arte, ele responde: “sim, sempre, cada vez que estamos perante a uma obra”. Nessa mesma perspectiva, Francois Lyotard afirma que, em princípio, as obras “não são governadas por regras pré-estabelecidas, e não podem ser julgadas mediante nenhum juízo pré-determinado, essas regras ou categorias são aquilo que a obra ou texto procuram”. Há certa contradição aí que gostaríamos de explorar: não há singularidade radical, a não ser no Real; e o Real não conjuga em forma. Se diante de uma obra nos indagarmos sobre sua própria enunciação, esta inevitavelmente anularia o sentido da obra. Sou eu quem determina o que é ser humano, ou certa “singularidade comum” condiciona minha própria enunciação? Se a produção for expressão de uma singularidade absoluta, ela não faz linguagem – nesse caso, não comunica. A arte é, de fato, expressão singular, mas não do artista; é do público, ou seja, do que é comum no simbólico que o imaginário do artista articula, criando depois identificação – uma vez que consegue reunir em síntese (numa obra, por exemplo) traços e efeitos presentes, porém dispersos na cultura, e por isso não apareciam. Não existe autodidatismo, e mesmo a originalidade é sempre relativa: a linguagem segue sendo construída no seu corpo de operações que demanda procedimentos técnico-linguísticos. Acaba, assim resgatando em cada imagem produzida, o passado no presente, ou atando o “como fora” feito e o “como será” feito.
Um exemplo típico dessa sobreposição de temporalidades é a obra de Nicola Samori, onde ele conjuga em seu próprio tempo (eis em ação a singularidade do artista) tempos e visualidades das escolas históricas (Barroco, Bizantino, etc) enunciando não um novo sentido à arte, mas cumprindo uma função que lhe é própria: a arte é manancial de sentidos que possibilita a criação de novos sentidos. Ou seja, o artista não parte do nada; há sempre uma história por detrás – e é a História que dá tração à arte. Por isso não é a obra que define o que é a arte; e por isso não é a singularidade radical do artista que está em jogo em sua produção. Todos se expressam de forma única; mas a expressão artística é precisamente distinta da organicidade da expressão individual de todo sujeito (e nem esta é “radicalmente” original porque no estilo pessoal do sujeito está sempre perpassando o Grande Outro). Esta possui uma circunscrição, sem a qual não somos informados sequer estar se tratando de “arte” (arte é uma articulação em potência já posta na cultura).
Em resumo, o que confere o poético da poesia (e da poiesis em geral) é, paradoxalmente, a semelhança com fenômenos do mesmo sentido, e não uma suposta singularidade absoluta da obra. Nenhuma obra possui singularidade radical: e só por isso podemos apreciá-la e compreendê-la em algum nível. O que a coloca à disposição do entendimento e de novas articulações poéticas é o ponto comum entre ela e os sujeitos: os espaços de intersecção que permitem identificação; do contrário, a obra geraria um estranhamento também radical, impossível de inscrever. Como a arte é linguagem porque é sempre, sempre Forma, ela imediatamente se inscreve na história, ou numa tradição histórica – essa história é o que lhe confere sentido e força – se reconecta com a obra, e assim se expande o campo artístico. As próprias imagens constitutivas das obras não são singulares: elas carregam um passado que as inscreve num campo prescrito de sentido.
O antropólogo e fotógrafo belga Etienne Samain, defensor da imagem como uma forma que pensa e da existência de uma “grande memória do tempo das imagens”, afirma:
Na medida em que as ideias por ela veiculadas e que ela faz nascer dentro de nós – quando as olhamos – são ideias que somente se tornaram possíveis porque ela, a imagem, participa de histórias e de memórias que a precedem, das quais se alimenta antes de renascer um dia, de reaparecer agora no meu hic et nunc [aqui e agora] ETIENNE SAMAIS, Como pensam as imagens, p. 33.
Ele acredita que a imagem carrega a memória de um passado que a atualiza e ritualiza; que as imagens já estão presentes, e nunca se apagam, à maneira de uma brasa que cintila novamente quando o fogo parecia ter se apagado (metáfora emprestada de Didi-Hubermann). Samain afirma ainda que a imagem “mais do que tentar impor um pensamento que ‘forma, formata, põe em forma’ (…), nos coloca em relação com ela. Uma imagem forte é uma ‘forma que pensa e nos ajuda a pensar’, pois atravessa, mnemonicamente, tempos e espacialidades. Entrando em contato com sua teoria (largamente influenciada por Aby Warburg), constatamos que a imagem está muito mais perto e muito mais longe do que pensamos: perto porque ela sempre presente repetindo-se no tempo (nunca é completamente nova) e porque pensa e faz nosso pensar; e longe porque a vemos anda sob a condição dualista de objeto. O mesmo Samain cita o epistemólogo e comunicólogo Gregory Bateson:
Durante muito tempo temos debatido para saber se um computador por pensar. A resposta é “não”. O que pensa é o circuito total, circuito que pode incluir um computador, um homem e um ambiente. Semelhantemente se poderia perguntar se um cérebro pode pensar e, de novo, a resposta seria “não”. O que pensa é um cérebro no interior de homem, que é parte de um sistema que inclui um ambiente. Gregory Bateson, 1991, p. 202
Ambos os autores defendem que a imagem é um “lugar de processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante”. (p. 31) Isso se dá por ser produto de inúmeras relações – desde a tecnologia dos dispositivos fotográficos, o ponto de vista de um observador, a existência de um tempo e espaço onde aquela imagem foi possível, e enfim, de espectadores.
Como dizíamos, nenhuma obra é integralmente disruptiva; quando se propõe explicitamente a operar rupturas, ao invés de continuidade – como é o caso do urinol de Marcel Duchamp (1917), por exemplo, a “ruptura” se dá às custas justamente de uma contraposição que reafirma a potência da concepção anterior da arte, ao requerer-lhe o título (uma ruptura realmente radical se veria obrigada a recusar esse título “arte”). O urinol, na verdade se chama A Fonte (1855), e faz referência direta à obra homônima do último dos pintores neoclássicos, Jean-Auguste Dominique Ingres. Confira a seleção de imagens no display abaixo:
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A pintura de Ingres é versão de outra anterior: Vênus Anadiomene[6] (1848), que repercutiu numa escultura de William Wetmore Story (1864) entre muitas e muitas outras. E todas as variações e interpretações revisitam a Afrodite de Cnido ou “Vénus pudica”[5] (séc. IV a. C.), possível origem desta tipologia, a que se seguiu a Vênus Capitolina, a Vênus de Médici e inúmeras cópias e versões posteriores. Quatro século antes de Ingres, a imagem já havia aparecido na obra do pintor renascentista Sandro Botticelli (O Nascimento de Vênus, 1483) e, depois de Ingres muitos outros pintores e poetas rearticularam a imagem antes que chegasse à Duchamp – por exemplo William-Adolphe Bouguereau, em seu Nascimento de Vênus (1879); além de servir de inspiração a Picasso, Seurat, Renoir, Magritte Théophile Gautier, e depois René Magritte, entre outros.
A fim de que a estranheza da produção não se torne egoísmo solipsista condenado ao hermetismo, é preciso considerar ao mesmo tempo o passado (o registro histórico) e o futuro – este sim, desconhecido, que é o olhar público, o olhar alheio a que toda obra se endereça, ainda que este alheio seja aquele no artista que aprecia – este, sempre estranho àquele que produz.
CONCLUSÃO: por uma pausa no tempo das imagens
Voltemos à questão do tempo das imagens: O que acontece quando as imagens passam mais rápido do que o olhar pode suportar? E quando são muito vistas, as imagens perdem a capacidade de se mostrar – ou o olho perde a capacidade de vê-las?
Walter Benjamin, no clássico ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica defendia a tese de que a hiper-exposição quebrava a aura que nas imagens devido à consequente quebra de sua unicidade; uma vez reproduzidas em escala indústria, algo na imagem se alterava, algo nela se partia, e deixava de dizer. Quando ele escreveu esse texto (1936), a velocidade das imagens já excedia a capacidade da visão, saturando a absorção do olhar. Analisando em retrospecto, a quebra da aura talvez tenha sido positiva em alguma medida: a velocidade das imagens dinamizou o olhar, e ensinou a visão a processar mais rápido o que viam. Num regime de imagens, estas perdem relevância em sua singularidade porque sua eficácia só pode advir de sua interação integrada – seu aparecimento é coletivo, vem sempre dentro de um contexto de outras inúmeras imagens em cadeias que despotencializa o valor de cada imagem individual.
A arte de um período entra em dialética com ele, e se dá sob a velocidade da produção de suas imagens. Mas – como vimos aqui diversos exemplos, ela intervém nesse tempo das imagens, sendo em larga medida responsável por aparelhar o olhar para enxergá-las. Marcos Beccari, em seu livro mais recente – Realismos (2022) [Assista aqui o lançamento online, que contará com minha mediação] apresenta um belo ensaia a respeito da obra tardia de Cézanne, que propunha já uma desaceleração, de modo a acompanhar a dinâmica de um olhar que se desagregava no final do século XIX. O abstracionismo que se seguiu propôs uma imagem fora do tempo ao adotar a forma física, material do suporte, barrando o atravessamento do olhar através do suporte – e fazendo-o retornar à matéria, aquém de qualquer coordenada tridimensional. Quando o crítico Clement Greenberg defendia a exclusão da figuração, atacava a perspectiva como instrumento de instalação da noção imaginária de espaço – logo, de tempo. Na arte pós-moderna, onde a imagem coordenativa (no caso, representacional) perdeu hegemonia e sentido, a qual propôs a subversão da instituição, dos museus e da própria galeria, a obra de arte passava a ser vista igualmente sob os tempos das coisas do mundo, uma vez que não era mais apenas a sua aura destruída, mas seu próprio espaço de instauração.
Em experimentos mais contemporâneos abstraiu-se da imagem sua própria “natureza visual” – como as propostas de espaço vazio de Piero Manzoni e as mais recentes de Salvatore Garau, onde o olhar então não é mais convocado a interagir; o espaço da obra é o espaço mental abstrato onde a luz não tem alcance, e tudo se reduz novamente à instância do imaginário. Na década de 50 um experimento nesse sentido vai nos abrir possibilidades de debate quanto a isso: trata-se da peça 4’33’’ de silêncio para qualquer instrumento, de John Cage (1952).
Não é possível barrar a avalanche de imagens que se produzem e se reproduzem incessantemente no interior das sociedades de consumo. A contemporaneidade vive um movimento transitivista de escoptofilia (desejo de ver e ser visto) incessante. Mas, tendo em vista justamente a ideia de que as imagens perfazem e performam o tempo, é possível refletir acerca de conteúdos capazes de neutralizar o consumo irresponsável de imagens: conteúdos imagéticos que façam o olhar pausar. Além dos exemplos já expostos, por exemplo da obra de Christian Marclay que trabalha questões relativas ao tempo (e mais recentemente tem se dedicado ao tempo dedicado às redes sociais), outro exemplo notável é o artista belga Dries Depoorter – que opera com Inteligência Artificial. Sua obra Shortlife se constitui de um relógio que contabiliza o tempo restante de vida, baseado na expectativa de vida do usuário parece qualificar o tempo mediante seu uso:
A post shared by Dries Depoorter (@driesdepoorter)
No próximo encontro do labPROCESSOS, iremos estender os exemplos, abordando, entre outras coisas, a “dimensão de experiência” proposta pelas imagens. Informações aqui!
[1] O tempo e espaço “diegéticos” decorrem no interior da trama; “diegese” é o tempo encadeado da própria da narrativa, à parte da realidade externa do observador.
[2] Vide em: https://entkunstung.com/archive/from-uncanny-valley-with-love