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  • Foto do escritorGustavot Diaz

NOTAS SOBRE A VIRTUALIDADE: O DESENHO NA PANDEMIA

Todos os objetos da vida material (o mundo das coisas do mundo) circulam numa cadeia cujo fluxo possui uma lógica mensurável, chamada “economia”. Esse fluxo – que são as trocas econômicas, explica inclusive o “modo de pensamento conceitual abstrato” (SOHN-RETHEL, 1987) da vida social, e orbita sob uma única coordenada (ideológica): a função. Até aí, mais do mesmo. O problema, em especial para os artistas, é que, nesse mundo, a estética não encontra lugar – a menos que seja um “diferencial” que potencialize lucro.


DARIAN MEDEROS, 2018 | óleo sobre tela (60''x72'')

DARIAN MEDEROS, 2018 | óleo sobre tela (60”x72”)


Estando meus cursos de desenho de modelo vivo suspensos, passei a refletir acerca dos limites da orientação virtual – prática que venho realizando desde o início da quarentena. A experiência do projeto Modelo vivo ONLINE (campanha de solidariedade a modelos, que organizo junto do coletivo FIGURE) também motivou uma reflexão. Faço essas elaborações em diálogo com o designer, também desenhista e amigo, Giu Alles.

 
Perdemos a dimensão “estética”?

No mundo pandêmico, o rebaixamento da estética é ainda mais nítido. Está explícito em nossa realidade social de forma obscena, na fala de ontem (14/06) do próprio Ministro da Educação, Abraam Weintraub: “eu, como brasileiro, quero ter mais médico, enfermeiro, engenheiro, dentista. Eu não quero mais sociólogo, antropólogo, filósofo, com o dinheiro que pago de imposto”. Enfim, todo sistema em decadência inventa seu próprio vírus… Nosso campo de percepção, diante de monitores e gadjets, se tornou majoritariamente escópico (numa cultura que já cultua imagens demais). Não mais presença física compartilhada na plateia dos teatros, shows, cinema e futebol, nas feiras e shoppings, ruas e calçadas: apenas imagens na web. Mantêm-se as relações, mas exclui-se delas o corpo; e toda experiência é ativada por um único sentido – a visão. Aqui o Desenho talvez tenha algo a dizer.


O isolamento forçado pela Covid-19 fez surgir inúmeras propostas de educação online, incluindo o desenho de modelo vivo via web – que relativiza profundamente a função central atribuída pela tradição ao Desenho: a de síntese em termos bidimensionais das propriedades tridimensionais dos objetos.  Disso, surgem questões: O desenho virtual é virtual, mas continua sendo ainda “desenho”? Qual o limite da prática desenhística condicionada a um referente “virtual”? Adianto que, a fim de pensar o tema de forma complexa, será preciso abordar uma série de assuntos (ou a gente encara a realidade, ou ela nos ataca pelas costas).

Desde o aparecimento da fotografia na primeira metade do XIX, ou até bem antes (segundo Jonathan Crary, as condições da recepção fotográfica já estaria em elaboração na Europa desde o século XVII, com a “câmara escura”)[1] a prática do desenho convive com a possibilidade de partir de uma solução “já pronta”. Ou seja, a matéria original de referência do artista não é somente o modelo vivo em sua volumetria ou a natureza em sua solidez tridimensional. Ingres e Degas são pioneiros que, valendo-se do uso de fotos, já secundarizaram a exigência do referente tridimensional, com o intuito de liberar a imaginação, que então podia se relacionar de outra forma com os conteúdos conceituais da arte – quer dizer, poderiam criar com liberdade e maior rapidez.

"Bailarina do corpo de dança", c. 1896 (Foto tirada por Degas para referência para desenhos e pinturas)

“Bailarina do corpo de dança”, c. 1896 (Foto tirada por Degas para referência para desenhos e pinturas)


O Desenho virtual

Mas na prática do Desenho a partir da web, algo muda. No monitor, o modelo já está resolvido espacialmente. Estamos, na prática, desenhando uma foto. A questão é que efetivamente “funciona” como uma sessão real de modelo vivo. Retornaremos a isso adiante.

Falávamos da perda da dimensão estética e de como o isolamento nas cidades (e das cidades) durante a quarentena nos separou ainda mais da experiência corporal, da sensualidade do contato – sob um ambiente econômico que já deflaciona por si só a dimensão estética. Esse contexto revelou uma condição da interação virtual: a realidade imprevisível do fenômeno é substituída pela manipulável e estereotipada representação. É neste domínio das representações do imaginário, que os produtores de imagens estão intimamente implicados.

Sabemos que o hambúrguer nunca chega como na foto; mesmo assim, no cartaz do produto é obrigatório constar “imagem meramente ilustrativa”. Então, de fato não sabíamos que uma imagem é e será sempre meramente ilustrativa? Sim, sabíamos. A obrigatoriedade da advertência é devida ao imaginário confundir-se à realidade, pois nele projetamos nossos desejos (na medida mesma em que as representações modelam nossas fantasias).

No desenho de modelo vivo online, a síntese plástica – bem como a síntese específica da fotografia – já está dada: você não precisa encontrar uma solução para resolver o problema da tridimensionalidade de seu modelo, ela já está pronta, basta olhar para o monitor e reproduzi-la. Esta diferença – fundamental entre as abordagens virtual e tradicional do Desenho, não é mero detalhe.

KEVIN MOORE, "Before She Passed (Portrait of my grandmother )" | pintura, técnica mista, 2019

KEVIN MOORE, “Before She Passed (Portrait of my grandmother )” | pintura, técnica mista, 2019


Educação do Olhar

Para responder a pergunta acerca dos limites de uma prática do Desenho condicionada a referentes virtuais, é preciso saber que, no fundo, a questão toda está no olhar. Falemos primeiro de seu contexto durante o isolamento:

A globalização já sinalizava a relativização do binômio tempo/espaço (operada há décadas pela Física Quântica). Mas foi preciso uma pandemia global para que aderisse ao tecido societal. O local das atividades é agora um site na nuvem. O horário? Quando eu acessar. O professor via web que atua no modelo de “tutoria” não possui a mediação de um espaço, nem tempo específicos: está 24 horas online. A princípio, é cômodo (a quem tem acesso para tais condições), mas há muitos poréns.

As relações foram de uma hora pra outra privatizadas por plataformas de meeting, que lucram sem precisar investir em infra-estrutura – afinal, é minha casa e minha conexão web que estão sendo usadas como suporte desta atividade. Do mesmo modo, sem a distância que me separava do local de trabalho, sem a marca institucional que preservava minha subjetividade, e sem o próprio espaço de trabalho, que servia como um escudo a meu corpo – o ensino remoto adquire traços de obscenidade, uma vez que expõe diretamente o interior de minha casa, da casa dos educandos e, assim, parte de nossa intimidade.

ALEX KANEVSKY, 2005 | óleo sobre tela (48”x48”). Legenda da postagem no Instagram:

ALEX KANEVSKY, 2005 | óleo sobre tela (48”x48”). Legenda da postagem no Instagram: “Before social engineering, social identities, social justice and ultimately social distancing”


Consideramos não ser “na aula” que o fenômeno do ensino acontece. Sabemos muito bem que é nos corredores da faculdade, na cantina, nas assembleias políticas e reuniões extraoficiais, nas atividades conjuntas, etc. os lugares onde efetivamente nos apropriamos do conhecimento. É a interlocução o que me permite elaborar conteúdos e apossar-me deles.

Consideramos também o seguinte: sendo um projeto capitalista, a virtualização traz consigo todas as suas contradições. Ela, assim trouxe à tona a perversão meritocrática de nossa sociedade com seus velhos discursos míopes de que “o conhecimento é passado igualmente a todos”, “aprende mais quem se esforça mais”, etc (Marcos Beccari faz uma brilhante crítica disso em sua série de textos “O vírus que somos”, e também no debate “Educação E(M) Pandemia”, do qual algumas ideias aqui são tributárias). O fato é que a educação no Brasil não é excludente: ela é o próprio instrumento da exclusão. Certamente não é a inclusão digital que irá resolver isso (9% da população das classes D e E tem acesso à internet). O ensino à distância é apenas um espelho da contratualização neoliberal: não oferece vínculo empregatício, nem estabilidade ou redes de segurança ao trabalhador. O consumo virtual que o isolamento nos impõe nos torna o hiper-objeto de consumo (das empresas), com nossa vida mapeada por algoritmos. Através dos smartphones em nossas mãos, estamos na mão das corporações. Bem ao modo daqueles jogos de realidade alternativa e nos laboratórios-espetáculo dos reality shows, a esfera virtual apenas emula as desigualdades da realidade concreta. Tendo todas essas considerações em mente, voltamos à questão do olhar.

Um dos limites que o desenhista encontra diante de referentes virtuais é compartilhado pelos professores em geral, uma vez que o papel de ambos não é apenas o de “passar” informações – mas sim mediar afetos[2]. Porém, o olhar e a educação já são, em si mesmos, processos de mediação.

Quando um produto, um conceito, ou uma imagem é mediada pela web, é inevitavelmente formatado nas “condições da web” – algo de que não nos damos conta. Alguns exemplos de formatação: o espaço visual nunca passa de um retângulo; a experiência interativa dependerá do fator imponderável da qualidade de conexão; a capacidade de edição de ambos os interlocutores é imensa (p. ex. posso alterar minha voz, ocultar minha imagem durante a conversa, ou simplesmente encerrar o chat). Sobretudo, no encontro virtual a interação se dá sempre e somente através de imagens e sons mediados.

O Desenho virtual irá se deparar com esses limites, de tal forma que seu objetivo passa a ser simplesmente o de superar tais limites. Claro, como dissemos ele continua oferecendo uma experiência bastante próxima de uma experiência “real”. No entanto, no desenho de modelo vivo de que tratamos mais especificamente, ao retirar o “ao vivo”, a mediação virtual faz uma segunda intermediação, colocando ao desenhista o desafio de “desmediar” ou seja, de retornar em seu desenho à experiência do real fazendo que ele insinue – não uma modelo projetada na tela de um PC, mas uma modelo ao vivo.

JARMOMÄKILÄ, The rejected, 2016-20 | escultura

JARMOMÄKILÄ, The rejected, 2016-20 | escultura


De olhos bem abertos

A virtualidade proporciona o diálogo com nosso próprio imaginário porque nela já estão refletidas, sob medida, nossas fantasias. Pela web realizo por procuração minhas pretensões de consumo, ou meus desejos sexuais, ou ainda fetiches voyeurísticos e ao mesmo tempo exibicionistas; nela posso satisfazer minha expectativa de reconhecimento (na contagem de likes), me entreter ou instruir, acessando a hora que quiser, encerrando a sessão quando preferir. A interação aí é, na verdade, a de cada um com suas projeções imaginárias; justamente o modelo de constituição psíquica da experiência, porque a própria realidade tem sempre um componente “virtual”. Em sua famosa intervenção A realidade do virtual, o filósofo esloveno Slavoj Zizek, através da visão psicanalítica de Jacques Lacan, questiona a natureza efetivamente “virtual” da web. As coordenadas que orientam desde sempre nossa vivência da realidade já são, em si mesmas, articulações simbólico-imaginárias – ou seja, virtuais (pois são fruto de projeções). A web, assim emula uma condição da própria psique ilustrando seu funcionamento.

A virtualização das relações não nos separa efetivamente do mundo – mas nos coloca em contato unilateral com nosso imaginário. É disso, entretanto, que o olhar não precisa: sendo o sujeito humano um ser gregário, seu olhar necessita de pluralidade. Dela é que advém os referentes múltiplos que darão suporte à criatividade e à visão ampla dos fenômenos.

“O que a literatura  faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite; não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor.”

Como nesta metáfora de Willian Faulkner, cada desenho, ou seja, cada olhar compartilhado permite ver muito pouco do que seria o modelo em sua realidade física e espiritual. Mas demonstra, através do compartilhamento de uma experiência (dada pelo olhar do desenhista) a infinitude de pontos de vista, e ao mesmo tempo a cegueira a que está sujeito um ponto de vista único. Em outras palavras: um Desenho oferece um contraponto de alteridade. Por isso o discurso fascista é sempre unitário – em contraposição a ele, a arte pressupõe multiplicidade de visões (com exceção justamente apenas daquela que nega a liberdade de expressão do múltiplo).

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Termino com uma advertência que pode ser útil: após a pandemia, não haverá “retorno” a nenhuma normalidade. Normalidade é sempre uma imposição conjuntural de forças. Nenhum retorno é possível quando as circunstâncias são completamente diversas das originais. De todo modo, não seria desejável. É ilusão achar que o “antes” é mais estável que o futuro. Os perigos da web já foram apontados por alguns de seus próprios fundadores – como Jaron Lanier (pioneiro da realidade virtual, do Vale do Silício e das redes sociais), e também Aaron Swartz (criador do RSS, do criative commons e do Reddit), e serão permanentes. Assim também o impacto sobre nossa atenção, nossa percepção, nossa visão – e portanto, nosso olhar. Numa palavra: é preciso perceber que o desespero por voltar ao passado é maior que o de assumir o ineditismo do presente. O melhor é abrir os olhos…

 

[1] “No início do século XIX, a ruptura com os modelos clássicos de visão foi muito mais do que uma simples mudança na aparência das imagens e das obras de arte, ou nas convenções de representação. Ao contrário, ela foi inseparável de uma vasta reorganização do conhecimento e das práticas sociais que, de inúmeras maneiras, modificaram as capacidades produtivas, cognitivas e desejantes do sujeito humano.” CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

[2] A ideologia oposta acredita em um tecnicismo pragmático, vendo no método científico apenas um modelo de eficiência. Esta acredita que a transmissão dos conteúdos pode ser imparcial, se estipulada conforme uma metodologia academicamente consistente.


Imagem da capa: OSCAR UKONU, “Passageiro”, 2018 | Caneta esferográfica em papel

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