Gustavot Diaz
O Desenho é o avesso da linha
Tenho ensinado que aprender a desenhar é desapegar-se da linha. O que costuma dar mais trabalho ao professor é o aluno que “já sabe desenhar”, ou seja, que é possuidor de “algum conhecimento” (significando normalmente que já passou por algum curso de desenho) e, portanto está suficientemente viciado por conteúdos técnicos equivocados. O principal deles é a famigerada “linha”. Se quisermos uma relação profunda com o Desenho, é imprescindível desapagar dela: ela estrutura uma série de outros vícios que impedem o avanço da compreensão formal. De fato, é um dos desapegos técnicos mais dolorosos, e o que primeiro se deve empreender.
Inicialmente, é preciso saber que linhas não existem no universo. Elas são entes primitivos de planos espaciais, e funcionam como representações simbólicas convencionadas da Geometria. Em outros termos: são abstrações – exatamente o que não precisamos quando o intuito é codificar a experiência visual acerca de um modelo real que está em nossa frente. Aqui é preciso dizer que em nossa concepção, Desenhar não é “representar”, ou seja, não é replicar uma representação do modelo. Desenhar é recriar as coordenadas da experiência visual por meio de um código capaz de interagir diretamente com o olhar, de modo a criar uma experiência real (não simbólica) no olhar do espectador. Esta é a forma como temos enunciado o Desenho em nossas elaborações.

IGNACIO ESTUDILLO”Retrato de Luisa Pena” | grafite
Assim, mais do que um instrumento simbólico (linha), faz-se necessária outra ferramenta, ou melhor – um procedimento técnico, capaz de efetivar sombra e luz no suporte. Como a natureza bidimensional da linha limita seu alcance apenas à representação bidimensional (outro motivo para abandoná-la), o Desenho de volumes demanda um recurso que promova a percepção da profundidade (pois o que enxergamos e desenhamos é sempre tridimensional).
O que afeta e mobiliza o olhar para a tridimensionalidade da forma é uma série de contrastes: contraste cromático, figura/fundo, contraste dimensional (maior/menor), contraste tonal (sombra e luz), etc. Recriando-se este último no papel, somos capazes de emular as condições de tridimensionalidade, expressando devidamente a experiência do volume – por isso é o que mais interessa ao Desenho tradicional realista.
A linha e a ideologia
Para ilustrar o efeito desastroso da linha no Desenho, recorremos a uma comparação emprestada às Ciências Sociais – o conceito de ideologia. (Clique aqui para consultar um texto que dá conta de explicar a complexidade do termo). Para o momento, basta sua definição geral: “filtro deformante das relações sociais”. A ideologia age através de simplificações e inversões operadas por estereotipias. Também em sentido genérico, estereótipos são formas simplificadoras de dessubstanciação do “outro” – quando o outro é reduzido a certas características ou traços marcantes, normalmente com função de depreciação.

JOSÉ JAQUIM SÁNCHEZ GARRIDO | Serie “A propósito de la intrahistoria” | Acrílico, bolígrafo e lápis 175 x 135 cm.
Por exemplo, quando pessoas são referidas por sua cor, essa eleição aparentemente arbitrária da qualidade “cor”, é um estereótipo; ou quando são nomeadas por sua orientação sexual, ou religiosidade – para citar exemplos mais comuns, como se estes atributos pudessem “representar” ou “explicar” a totalidade dos seres no mundo. São eleições que se fazem, conscientes ou não, mas sempre carregadas de violência simbólica, com intuito não de “apontar defeitos”, mas eleger alguns significantes que substituam a relação com sujeitos reais em sua complexidade e densidade. Substituindo os seres por uma representação caricata, eu alieno sua subjetividade e determino assim, facilmente, como será minha relação com eles – ou seja: também caricata e simplificada (o que no fundo reflete minha própria ausência de consistência). Essa falsificação, embora antiética e coisificadora, é moeda de uso social corrente e opera à custa de uma análise crítica da sociedade: ao invés de apresentar a complexa e plural realidade social de forma substantiva, complexa e plural, a estereotipia aleija nosso entendimento do mundo diminuindo o “outro” para que caiba nos curtos limites de uma compreensão limitada.
Enquanto estereótipos são instrumentos da ideologia, a linha é o instrumento da tipificação – que é também uma forma de estereotipia a serviço da simplificação da realidade. Se aceitarmos o chavão de que “desenhar é uma forma de ver”, a primeira coisa a fazer é nos desembaraçar desses instrumentos simplificadores e encarar a realidade de forma objetiva.
A linha substitui a característica mais fundamental do objeto: sua dimensão volumétrica – a qual é substituída por contornos bidimensionais que o objeto simplesmente não possui. Exatamente como atuam os estereótipos na ideologia, a linha simplifica um traço do modelo quando percebido rápido demais, a exemplo das caricaturas. Estas às vezes surpreendem traços importantes, porém injustos, insuficientes para representar um ser de maneira qualificada. Com objetivo de facilitar a percepção, a linha substitui a complexidade do modelo por impressões pregnantes, mas falsas, resultantes do olhar distante e desinteressado.
Enquanto a linha simplifica para que não vejamos; o verdadeiro objetivo do Desenho, no entanto, é fazer aparecer.
Desenhar de olhos fechados
É preciso fechar os olhos para meditar, pois a visão desconcentrada desencadeia pensamentos que desregulam a energia autônoma, cuja estabilização é justamente o sentido da meditação. Fechamos os olhos na meditação visando uma ancoragem do corpo ao presente. Assim também o desenhista diante de seu modelo só será capaz de vê-lo de fato quando vivenciar esse estado meditativo que é “ver de olhos fechados”.

PACO LAFARGA, “Hueco drama” | carvão e pápis sobre painel (96 x 75,5 cm) 2008
Em nossas reflexões (em breve publicadas em livro) dizemos que “desenhar é desver”. Seu sentido preciso é esse: “fechar os olhos” metaforicamente para poder ver além dos estereótipos e soluções simplificadas do mundo. Fechar os olhos para enxergar a dimensão estética da formatividade, antecipando-se à simbolização convencionada que substitui o mundo pelo que sabemos do mundo.
Desver é um olhar aberto à escuta do modelo, as suas exigências formais e expressivas em lugar de um olhar postulante que pré-determine os modos de ver.
Esse olhar de “escuta” é o único capaz de realizar no presente a experiência visual necessária para se desenhar. Não custa lembrar que o Desenho é, sobretudo um articulador entre a experiência visual do desenhista e a experiência visual do espectador. Quando a experiência do desenhista é plena, acontece em seu olhar uma apropriação da forma. Desde já um exemplo: quando você faz uma retrospectiva do último ano, lhe vêm à mente cenas de certos acontecimentos apenas – essas foram as únicas experiências reais, os únicos momentos em que coincidiram corpo e atenção presente – coincidência capaz de transformar situações em lembranças afetivas (ou “vivências” reais). Na Psicanálise, isso se chama “registro simbólico”. Todo o resto dos acontecimentos do ano que simplesmente não lembramos, passou-se em repetições automáticas que não foram registradas porque não constituem experiências de fato: é somente ação ausente, repetição irrefletida.
Em termos de economia de imagem, uma experiência visual tem valor maior que o da fotografia de registro. E a própria fotografa, assim como toda imagem, só tem sentido na medida em que é experiência visual (na medida em que é elaboração que permita que alguém veja). A experiência visual é como aquela memória guardada de um evento, mais imperecível que as fotografias. Sabemos que mesmo a fotografia não dá conta de simbolizar a experiência tão bem como essa “memória apropriada” que é a experiência visual. Muito mais do que reproduzir (copiar) uma imagem, para o desenhista a experiência visual se dá quando ele se apropria da forma e se torna capaz de produzi-la sem ver. Portanto, não se trata de uma reprodução. O Desenho, ademais, em sua natureza mais pragmática, demanda isso, uma vez que carrega em si um paradoxo elementar: precisamente no momento em que desenho, não estou a olhar para o modelo, e sim para o papel. Quando desenho, estou concentrado, não no modelo, mas na imagem dele que interiorizei e para a qual busco então expressão plástica sensível na superfície do papel.
Este é um pouco do conteúdo que abordaremos no SEMINÁRIO Desenhos do Corpo (clique na imagem para mais informações)

imagem da capa | AARON FERNANDEZ DUVAL, “Composicion”
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