Gustavot Diaz
O DESENHO COMO SÍNTESE

ANDREW WYETH, sketch for the painting “Barracoon” (1976) | lápis sobre papel
Parte do conteúdo a ser ministrado na Oficina “FIGURA CONTEMPORÂNEA: Desenho & Modelo vivo” (Curitiba | 12, 13 e 14 de Maio | 2016)
A operação de síntese realizada pelo Desenho se dá em duas dimensões: uma articulação plástica e outra filosófica. O Desenho mereceria mesmo a criação de uma Epistemologia do artesanal (para além da Semiótica) que abordasse essas duas dimensões; por hora, oferecemos algumas notas para esboço de uma “Teoria do Desenho”, não apenas enquanto sistema sígnico de representação, mas como exercício de compreensão do mundo.
O primeiro passo é para trás: recuando até que se faça possível um olhar comparativo entre o desenho e as outras áreas artísticas. Comecemos pelo poema “Cruz na Porta da Tabacaria” (1930) de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa. O poema é um exemplo perfeito de eficácia nos três níveis a que alude Ezra Pound: melopeia (musicalidade), fanopeia (imagética) e logopeia (criação de sentido). Segue a primeira estrofe:
Cruz na porta da tabacaria! Quem morreu? O próprio Alves? Dou Ao diabo o bem-estar que trazia. Desde ontem a cidade mudou. (…)[1]

Fernando Pessoa
A forma poética metrificada é uma síntese operacional da representação. Por meio dela o poeta põe em andamento a intenção que sustenta a poética, dando expressão ao que até então não tinha. Quando Pessoa verte a cena para o verso, essa operação implica uma forma sintética que concilie a retórica da imagem no interior da própria linguagem. Magistralmente, ele primeiro nos apresenta a imagem: “cruz na porta da tabacaria”, criando uma experiência onde a palavra serve de mediação direta à imagem. Assim remete ao espanto diante da imagem da cruz e a posterior reflexão acerca do episódio. O sentido do poema é justamente a substituição de afetos que constituem o imaginário urbano do escritor – seu bem estar na cidade define-se por uma teia de relações que se rompe quando um dos pontos arrebenta.
Já a síntese conceitual, a logopeia, está no sentido do poema, onde Pessoa sobrepõe a dimensão espacial à dimensão afetiva, enunciando que quando os afetos são rearticulados, no caso, pela perda de um ente conhecido, a cidade se transforma subjetivamente – cidade que é na verdade uma disposição de referências afetivas. A poesia é uma síntese operacional de elementos expressivos – sua intenção está implícita no ato de escrever.

DIEGO VELÁZQUEZ, “As Meninas” (detalhe)
Vejamos um exemplo na pintura: na famosa tela “As Meninas” (1656) de Diego Velázquez, a síntese plástica se apresenta na própria ação pictórica, onde as pinceladas sintetizam quase que brutalmente formas da realidade – os borrões de tinta ao lado, quando vistos à distância, aparecem em sua devida forma, numa metáfora de que a tinta, ao sintetizar impressões visuais, gera significados conceituais futuros.
Porém toda a plástica da composição da obra “As Meninas” ruma para um sentido interpretativo, que é a síntese conceitual da tela: Velázquez simboliza toda a hierárquica sociedade absolutista de Felipe IV, composta pelo clero, pelas ordens, pelo poder régio – que figura fantasmaticamente num espelho (a fim de se manter, a autoridade deve ser apenas evocada, preservando sua natureza simbólica); e por fim um segundo escalão, composto pela herdeira real e sua assistência de aias, bufões e cortesãos. O último dos pajens – a criança à extrema direita da tela – um estrangeiro italiano ajudante de câmara, um protegido de segunda ordem, ainda encontra algo sobre o que possa exercer o seu poder: ele pisa no cachorro. Neste espetacular comentário social, quem efetivamente posa não é a princesa, nem o rei, nem a rainha, mas nós mesmos, espectadores futuros para quem o pintor olha, invocando-nos de dentro da tela.

DIEGO VELÁZQUEZ, “As Meninas” (1656)
Poder-se-ia fazer uma exegese desta tela, já por demais glosada na História da Arte, como a de Michel Foucault, tantos são os significados que ela institui, ao desinventar o espaço até então considerado nas obras artísticas para inaugurar uma nova ideia de composição. Aí o Desenho se mostra em toda sua potência, construindo um elaborado discurso, de fina síntese. Se a forma plástica sintetiza personagens reais na tela, ao mesmo tempo os simboliza, criando um espaço inédito onde os seres estão para além de sua secular existência. A imagem não é meramente “pálido reflexo” do modelo; é um modelo em si mesma.
A dimensão conceitual da síntese é a mais difícil, em que pese as conhecidas dificuldades de aquisição técnica. Ela é mais importante do que tudo e vem antes da obra – está no cerne de constituição da própria imagem, na escolha dos elementos, na abordagem da forma, na ressonância de sentidos que aquela irá produzir. No entanto, é pouco observada na produção pictórica em geral, estando efetivamente ausente em grande parte da pintura. O que faz de Velázquez um mestre para além do tempo não é apenas sua qualificação técnica – esta, aliás, conta pouco. O que o torna eterno é a densidade poética, a síntese de significados que seu trabalho é capaz de operar.
[1] Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
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Imagem da capa:
ANDREW WYETH, ‘Barracoon,’ 1976 | Tempera Copyright © Pacific Sun Trading Company
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