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  • Foto do escritorGustavot Diaz

O PERMANENTE PARADOXO DO DESENHO

O desenho é, antes de tudo, experiência visual. Enquanto experiência necessita ser “simbolizado”, formulado em termos de linguagem. Embora seja ele o próprio ato e ação de simbolização, de formulação linguística (é através do desenho que simbolizo um trauma, por exemplo), o desenho é em si também uma percepção específica, com seu repertório particular de coordenadas: os elementos da linguagem visual (ponto, linha, reta, cor, etc).

Heinrich Wölfflin (1864-1945) percebeu, com uma intuição notável, os resultados desta aplicação em sua caracterização dos estilos linear e pictórico. Em síntese, ele conjuga numa esquematização de princípios toda arte ocidental como subordinada a uma dessas categorias estilísticas. A “arte linear” baseia-se no desenho, na proporcionalidade, na linha e na dimensão harmônica; a “pictórica” baseia-se na cor, na gravidade, na ambientação, no arrebatamento emocional. Citaremos exemplos práticos mais adiante. Em outra obra*, Wölfflin analisa a origem dos estilos, com um estudo do surgimento do Barroco a partir da desagregação da Renascença que ajuda a compreender bastante essa oposição. Como nossa contribuição, escrevemos algumas linhas sobre o assunto.

Hippolyte Flandrin, "Jovem nu sentado" (1855)

Hippolyte Flandrin, “Jovem nu sentado” (1855)



A adoção do linear ou do pictórico por cada artista é intuitiva e depende de suas idiossincrasias. Mas há uma questão perturbadora nessa divisão, ainda que as categorias propostas pelo esteta suíço sejam meramente analíticas: o que possui cada um desses estilos que possa corresponder, por exemplo, às expectativas de uma disposição recalcada como a de Van Gogh ou a liberal de um diplomata como Rubens (ambos “pictóricos”) e ainda dar contra de satisfazer a um simbolista místico como Rosseti e ao mesmo tempo a um acadêmico condecorado como Hippolyte Flandrin (ambos “lineares”)?

Dizíamos que a experiência visual do desenho – e falamos exclusivamente do desenho de observação –, como impacto do real diretamente sobre os sentidos, precisa de uma articulação conceitual, uma mediação linguística a fim de ser traduzida, e daí fazer-se inteligível ao próprio observador. As ferramentas (elementos da linguagem visual e instrumentos de produção) e o modo (método e procedimentos técnicos) de que se valerá o artista dependerão, sobretudo, de contingências exteriores (se pertence a um sistema de guildas numa correlação mestre-aprendiz ou atua num sistema de artes liberais; se tem acesso aos materiais expressivos, etc.). Para explicar resumidamente (sem querer ser etapista): uma vez superadas essas contingências, temos enfim o observador/artista diante de seu modelo. A maneira como irá simbolizar a experiência visual pela qual está passando depende de como lançará mão do vocabulário de seu instrumental e de sua técnica para tornar visível (transformar em linguagem – no caso, desenho ou pintura) aquela experiência do olhar, como ele articula esses conhecimentos adquiridos e como reflete sobre as articulações e seus consequentes resultados.

Dante Gabriel Rossetti, "Retrato de Bruna Brunelleschi (1878)

Dante Gabriel Rossetti, “Retrato de Bruna Brunelleschi” (1878)


Voltando ao exemplo de nossa primeira questão: de que modo Van Gogh e Rubens, guardadas as devidas diferenças, poderiam se “contentar” com a mesma articulação, o mesmo tipo de solução estilística? Como podem ambos adequar-se comodamente à mesma categoria (“pictóricos”)? A resposta tentaremos esboçar a seguir.

A linha simboliza a forma – por excelência discursiva, narrativa; mas a cor é capaz de representar a luz e seu contorno emocional, patológico (de pathos). Assim é que, enquanto a linha pode ser racionalmente organizada para uma finalidade (construir um discurso, contar uma história) para fora e, portanto ausente dela própria; a cor expressa em si mesma esta finalidade. Tem esta última o caráter do “imediato” daquilo que se processa no “agora”, em seus próprios termos; enquanto a outra corresponde à natureza do memento, àquilo que passou e é então passível de simbolização, de ser transformado em constructo narrativo.

A cor e sua plasticidade mutável, a flexibilidade de seus modelamentos durante a pintura, o aspecto cambiante das sensações que é passível de gerar e de traduzir, é a escolha inevitável a uma personalidade visceral como a de Van Gogh, mas também às intenções de helenização de Rubens. O que este mestre flamengo realiza é o que podemos chamar de “carnavalização” do ideário católico do início do século XVII ao representar tanto personagens da Ilíada, quanto patriarcas bíblicos sob a mesma paleta “pagã”. O tratamento em siena queimada, carmim, e vívidos amarelos de Nápoles que encontramos na carnação de seu João Batista criança, vemos também em suas Vênus ou nas filhas de Leucipo.

Jean-August Dominique Ingres "Condessa d'Haussonville, detalhe" (1845)

Jean-August Dominique Ingres “Condessa d’Haussonville, detalhe” (1845)


Já a linha, polo complementar e oposto da cor, nos fala de outro universo de coisas. Se a linha é, a um só tempo, o centro nevrálgico do conceito e inimiga mortal do desenho enquanto “ilusão tridimensional”, entretanto regeu o espírito de todos os movimentos de instituição e resgate da tradição, da técnica, da precisão, ao longo da História da Arte. Fora sempre em nome do “desenho”, subentendida aí a linha, que a “arte oficial” buscou se instituir, desde o próprio Renascimento italiano (em grande parte circunscrito à tradição do desenho toscano); seguido pela Academia del Disegno de Florença (1563) organizada por Giorgio Vasari; à Academia Real dirigida por Charles Le Brun (em Paris, 1663), considerada a primeira Universidade de Artes, até o movimento neoclássico do XVIII, que concluiu o século XIX com um mestre do desenho linear – Jean-Auguste Dominique Ingres.

Justamente a intenção neoclássica (que Ingres aprendera diretamente de David) era a de atender ao apelo feito um século antes por J. J. Winckelmann: um retorno total à arte clássica greco-romana, vendo nela uma arte “despida de toda transitoriedade”. A síntese do sentimento artístico desse mentor do neoclassicismo é: “medida e forma, simplicidade e nobreza de linha, serenidade da alma e emoção suaves”. Noutras palavras, poderíamos dizer assim: proporcionalidade e geometria; correção do desenho; paciência para se cumprir essa tarefa (a busca pelo equilíbrio era, claro, um ideal da época).

Uma função crucial do desenho, especificidade que somente a linha possui, é a capacidade de construção formal estável, de concatenação discursiva imune a qualquer oscilação de sentido. Não por acaso foi ela reivindicada pelos movimentos oficiais citados: os enumeramos em ordem cronológica porque pertencem eles a uma sucessão legatária de disputa do campo artístico em sua dimensão política – precisavam todos construir um discurso que fosse compatível com o do Estado (ou seja, disputaram em seu tempo a versão oficial do que era ou não era “Arte”).



Gustave Courbet, "Autorretrato | Homem com cachimbo" (1849)

Gustave Courbet, “Autorretrato | Homem com cachimbo” (1849)


É muito recente o ideal romântico do artista incompreendido, rejeitado pela sociedade, arrivista ao poder. Como o termo indica, é “romântico”, ou seja, pertencente ao século XIX. Até então, o artista era um agente integrante e muito considerado na sociedade. O primeiro Salão dos Recusados (1855), foi uma iniciativa do pintor realista Gustave Coubert, expulso da Exposição Universal de Paris (que premiava as obras que emulavam as concepções da Academia – quer dizer, a versão adotada pelo Estado francês). A Academia privilegiava o desenho linear, que os realistas não possuíam. A oficialidade precisava de um instrumento “idôneo” e “impessoal” para contar sua própria história. A cor é pessoal e subjetiva demais; o Realismo é “real” demais para uma versão definitiva da história nacional; é anedótico, referencial, não comporta a busca pelos ideais eternos pelos quais o Estado deve se guiar; o Impressionismo (que seguiu o exemplo. lançando oito anos mais tarde o famoso Salon de Refusés) era então da mesma forma impensável como instrumento legítimo de representação histórica; tampouco os artistas envolvidos estavam interessados nisso.

Os impressionistas foram talvez os que primeiro compreenderam em profundidade uma função excepcional da cor – sua potência de simbolização sensorial imediata. A adoção de telas de pequenas dimensões, a exclusão do preto da paleta, a secundarização do desenho, tudo isso rearticulou os elementos da linguagem visual tornando-os capazes de refletir instantaneamente a impressão fugidia de momentos sob uma única senha: a luz.


Lucian Freud, "Autorretrato" (2002) e "Último retrato de Leigh", inacabado"

Lucian Freud, “Autorretrato” (2002) e “Último retrato de Leigh”, inacabado”


Somente após a perplexidade da crítica ao perceber o erro cometido com os impressionistas; e somente após o advento da arte moderna e o desbaratamento das Academias é que fora possível a um Picasso retratar um episódio da guerra civil na Espanha – aí tínhamos, como se referia Wölfflin, o “sentimento da forma” já realizado: tal era que a subjetividade de um artista poderia enfim representar, simbolizar melhor a experiência das catástrofes de uma guerra do que um desenho idealizado, elaborado geometricamente (estamos falando de Guernica, na década de 30).

Para encerrar, nos vêm à mente dois pintores, quase contemporâneos, que em vida foram amigos muito íntimos: Lucian Freud e Francis Bacon. É tentador referir-se imediatamente a Bacon como pictórico e a Freud como linear. Mas, num segundo momento, ficamos em dúvida. Não seria, de alguma forma, o contrário? Não estaria Bacon – com suas linhas paralelas e concorrentes explícitas, suas figuras geometricamente circunscritas nas telas, o equilíbrio dinâmico de suas composições – informando uma tendência pela criação de um discurso menos intimista, mais “realista”, formal e submetido à linha do que Freud? E não estaria este, especialmente em sua última fase onde, ao pintar por planos o desenho inicial era completamente subsumido (explodindo sob camadas infindáveis de pinceladas de tal modo que a aparência do objeto individualizado desaparece sob meras impressões cromáticas), não estaria ele nos dando os elementos de uma intenção i-mediata do espírito incapaz de simbolizar através de uma figura limitada pela linha, individualizada em seu conteúdo e restrita formalmente? O arrebatamento do momento encontra antes nas massas cromáticas pictóricas a sua expressão imediata – porque é indefinível conceitualmente.

É sabido que Freud demorava para pintar, trabalhando muito tempo cada tela, fazendo seus modelos sofrerem – uma atitude típica do pintor linear; no entanto o resultado são camadas desordenadas de cores onde a forma se perde… Já em Bacon se dá o contrário – na atitude típica do expressionista que pinta a emoção do momento, o que temos na ambiência de suas formas grotescas e perturbadoras são formas geométricas, composições equilibradas, estruturas fechadas em si mesmas, telas com pouco uso de cores saturadas: típicos valores lineares!

A produção artística resiste à categorias. Mas mesmo assim, continuamos a escrever…


Francis Bacon, “Três Estudos de Lucian Freud”

Francis Bacon, “Três Estudos de Lucian Freud”



Francis Bacon, “Tríptico em memória a George Dyer” (1971)

Francis Bacon, “Tríptico em memória a George Dyer” (1971)



* WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco: estudo sobre a essência do estilo barroco e sua origem na Itália. São Paulo. Editora Perspectiva, 2012. (pp. 87-102)

Imagem da capa: GUSTAV KLIMT (carvão e pastel sobre papel)


[Artigo publicado originalmente no site filosofiadodesign.com em 26 de Janeiro | 2015]

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