Gustavot Diaz
[PROCESSOS POÉTICOS 2ª EDIÇÃO] SEXTA AULA | ÉTICA DAS IMAGENS
Hoje falaremos de poesia. Gostaria que considerassem esta frase do escritor português José Saramago: “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. A expressão denota um sentido ético intrínseco ao fazer (e ser) poético. O verbo “reparar”, como verbo transitivo, tem origem em reparare = “começar outra vez, preparar novamente”, e todos os seus sinônimos remetem a tal formação latina: re (“outra vez) + parare = “preparar, aprestar”. Outros sinônimos são: renovar; melhorar, retocar, consertar, restaurar, indenizar, restabelecer, compensar[1].
Creio que interpretação correta da frase de Saramago seja a de um reconhecimento ético da experiência visual, considerando que as imagens, cada vez mais têm uma dimensão ética para além da estética. O ponto central é o sistema de “representações” a que a imagem está sujeita. Quando falamos de estereótipos – em que pese a etimologia da palavra (estereótipo vem do Grego stereos, “sólido”, mais o Francês type, “tipo”), falamos de algo de fato pertencente ao âmbito formal, mas que excede o plano do simbólico porque aciona também imaginários. Como diz um certo filósofo alemão: “as forças materiais devem ser depostas por forças materiais; porém as forças intelectuais também se tornam forças materiais, à medida em que se apossam da consciência dos homens”. É nesse ponto, justamente de captura das consciências pelas representações imaginárias que a ética se revela, imprimindo uma função à arte.
Trouxemos um exemplo (ver acima tela de Modesto Brocos) para avaliar a dinâmica do impacto das representações (discussão e análise da obra feita com a turma do curso Processos Poéticos 2ª ed. – a qual essa série de textos é dedicada).
Crítica crise
Dizíamos que a arte pode assumir “função” no seio social; entretanto, é necessário frisar que ela permanece inútil.
Enquanto a condição de um produto é não oferecer sentido nenhum para além de sua função; a condição da arte é a de só oferecer sentidos.
Isso, é claro, a transforma num problema para a sociedade de consumo – na qual o que não aufere capital não encontra lugar. O lugar, a própria existência da arte no capitalismo, representa uma ameaça e coloca em cheque o sistema de circulação de valores. Costumo dizer que a arte é o anti-produto por excelência. Ela revela nossa maior e mais exclusiva vantagem, enquanto espécie: o ser humano é o único a produzir o inútil. Aí está, talvez porque Michelangelo, que sempre fizera questão de ser denominado “escultor”, ao final da vida afirma, contraditoriamente, que, na verdade nunca fora escultor – era apenas um cavalheiro que esculpiu obras como presentes para amigos diletos. Para além da vaidade do mestre florentino, há um significado muito claro aí: o valor (muito bem) pago à Michelangelo por suas obras nunca seria suficiente, nem compatível, com o gênio artístico, que não tem valor de troca (financeiro) – tem apenas valor de uso (simbólico).
Isso, aliás nos permite refletir sobre a condição geral de toda arte produzida em nome do autoritarismo. Não é difícil perceber que a produção – seja comissionada, seja produzida espontaneamente por mero alinhamento ideológico em regimes autoritários, é puro pastiche (incluindo aquela dita “pró-governo” realizada hoje no Brasil). É pastiche – performática, cenográfica, porque aparece somente quando o laço político que sustenta os regimes de liberdade (os regimes democráticos) se exauriram.
Uma diferença relevante, inclusive, entre autoritarismo e autoridade é magistralmente ilustrada na tela As Meninas, de Diego Velázquez, na qual as figuras do rei e da rainha não aparecem fisicamente, mas através de seu reflexo num espelho que acaba por orientar toda a cena. A verdadeira autoridade não carece da demonstração física da força: ela apenas é. Sua mera existência é ao mesmo tempo expressão de poder. É justamente quando esta autoridade é perdida que a ação física emerge (tornando-se performance da impotência).
Por esse mesmo motivo, governos autoritários podem ser temidos; nunca respeitados: neles, a ausência da autoridade real precisa ser compensada. Todos sabemos disso: quando crianças, se a mãe ou o pai nos batem, é porque o halo de autoridade já se perdeu. Seu olhar de reprovação não foi suficiente, nem sua palavra: sobrou apenas o recurso extremo da força. Como disse uma colega: “arte é lixo atômico” – seu rastro de consequências inevitáveis impede o descarte puro e simples. Ela denuncia, ressoa, amplifica discurso, aperta, mas também destitui laços. Nenhum regime passa incólume após ser criticado pela vitalidade de uma arte crítica verdadeiramente potente (exemplo contundente foi a MPB, que teve um de seus melhores momentos sob o regime militar).
Voltando ao processo poético…
O processo poético se organiza – dizemos assim por motivos metodológicos, em dois eixos bastante distintos. Um vai da imagem ao projeto (no qual a imersão do artista produz “como efeito” uma obra que, por sua vez demandará novas leituras); outro, vai do projeto à imagem (onde a tarefa é escrutinar erros e acertos do trabalho final em relação às diretrizes projetuais). Durante o encontro síncrono desenvolvemos mais longamente estes, como os demais assuntos abordados no texto.
Prefiro o termo “poético” ou invés de “criativo” pelos seguintes motivos: criatividade é hoje um termo pulverizado em todas as áreas (de business a salões de estética); é um conceito, ou processo de difícil definição, que se reduz quanto mais o termo se vulgariza. Especialmente, não gosto da palavra por gerar certa ressonância com relações de utilidade, do tipo forma/função. Poética – etimologicamente a mesma coisa que criatividade, tem, no entanto o mérito da especificidade, quer dizer, ela é própria à produção poética; designa fenômenos estritos da arte. É preferível adotar a divisão proposta pelo poeta norte-americano Ezra Pound, entre “criadores” (aqueles que criam processos), “mestres” (aqueles que dominam os processos), e “diluidores” (aqueles que propagam o conteúdo já enviesado, ou sem substância).
Outra distinção de Pound que nos interessa são as caracterizações de fanopeia, melopeia e logopeia – atribuída por ele aos diferentes tipos de poesia. O primeiro indica poesias com prevalência nas imagens; o segundo na musicalidade (que o poeta julgava o fator mais importante da poesia); e o último como sendo aquele guiado pelo conceito. Tomamos de empréstimo essa terminologia para pensar a plástica, onde o ideal talvez fosse a conjugação das três categorias, correspondentes – numa transliteração entre linguagens – a, respectivamente: temática = fanopeia, conceito (abordagem) = logopeia e composição (técnica) = melopeia. Importante lembrar que essa “equação” da criação possui variáveis, sobretudo na ordem de seus elementos.
A primeira variável da “equação poética” são nossas trocas intersubjetivas, nossa relação com o mundo. Num contexto de imagens, nossa relação com elas e com o mundo da visualidade não se constitui apenas de relatos históricos impessoais; constitui “experiências”, ou seja, eventos onde o eu está implicado. Vale lembrar que a dimensão deste eu (Je) jamais é a dimensão biográfica, a trajetória individual (moi). É num registro subjetivo que o diálogo com as imagens acontece. A percepção do mundo, nossa interação com ele (no fundo, uma interação com imagens) é anárquica e permeada de processos imaginários que nos escapam. Assim é que somos sujeitos, mas também objetos da relação com as imagens – não é clara nossa circunscrição frente a elas, as quais ativam conteúdos e ressonâncias para além da nossa vontade. Em todo caso, a relação com a imagem é sempre uma experiência visual; o que não se sabe ao certo é até que ponto somos agentes/reagentes, ou meros produtos de tal conexão.
Amit Goswami em seu livro O Universo Autoconsciente exemplifica uma condição semelhante a do artista, numa anedota que já contamos em outro artigo:
Era uma vez um cossaco que via um rabi cruzando quase todos os dias a praça da cidade, mais ou menos na mesma hora. Certo dia, ele perguntou, curioso: – Para onde o senhor está indo, rabi?– Não sei com certeza… – respondeu o rabi – O senhor passa por aqui todos os dias, a esta hora. Certamente sabe para onde está indo! Quando o rabi insistiu em que não sabia, o cossaco irritou-se e, em seguida, desconfiado, prendeu-o, levando-o para a cadeia. Exatamente no momento em que trancava a cela, o rabi voltou-se para ele e disse, suavemente: – Como o senhor vê, eu não sabia… POR AMIT GOSWAMI
Essa é a mensagem da mecânica quântica, diz Goswami, que ilustra a dualidade onda-partícula na qual “a interrupção cria novas possibilidades”. Um dos enigmas da Física Quântica é o fato de os elétrons dos átomos poderem aparecer ora como partícula, ora enquanto onda. Heisenberg, o famoso físico, compreendeu que “a trajetória do elétron só aparece quando o observamos” – o que equivale dizer que observar o fenômeno altera o fenômeno. Assim, para resolver essa descontinuidade no comportamento da matéria, foi preciso incluir nos cálculos o ato de observar.
Esse princípio da Física Quântica demonstra com precisão o que seria a posição ideal do artista: abrir-se para o mundo, permitindo que seus diagramas de força o habitem, e ele neles. A interrupção em seu trajeto – quer dizer, o outro, virá cedo ou tarde. E será inevitável a alteração de percurso que promoverá.
Ao artista, não cabe transmitir nenhuma mensagem; isso é feito melhor por carteiros e pelos bispos de plantão. Ao artista, a melhor opção é o I would prefer not to de Bartleby, materializado nos experimentos “Quadrado branco sobre fundo branco” do Suprematismo de Malevitch, ou na Sinfonia 4’33’’ de silêncio, de John Cage. Intimamente vinculados, ambos os experimentos simbolizam um recuo do artista para dar voz ao público: toda obra é uma “muda evidência”, diz o artista Nicola Samori – um trampolim para que o público se atire. Cabe ao artista apenas encorajá-lo.
Po-ética
Em seu poema/prefácio Arte Poética, José Luiz Peixoto diz “o poema não tem mais que o som do seu sentido”. Aí há uma relação muito oportuna com a produção plástica. Tenho dito que a função do Desenho é desaparecer, pois somente desaparecendo enquanto matéria é que pode expressar – posto que o seu dizer não está nos elementos da linguagem, tampouco nos materiais expressivos, mas justo na articulação deles todos. Para existir enquanto matéria poética é necessário fazer desaparecer seus elementos constituintes de material bruto, espesso. Em desaparecendo enquanto matéria plástica (carvão, óleo, acetato de celulose, emulsão acrílica, etc) para fazê-los funcionar como matéria expressiva, colocando-os em constelação através dos procedimentos linguísticos para gerar a operação poética.
A poética é, assim – conforme nossa própria reflexão, a articulação entre a ordem lexical de seus referentes e a articulação destes (que são, afinal elementos da língua) constelados em uma trajetória de conceitos basilares constante no tempo – e que se revelam na produção efetiva.
Em resumo: poética é a relação metabólica dos elementos de linguagem; o processamento de seu ferramental. Essa afirmação leva a concluir que, ao menos na criação poética, o órgão está implícito na função.
“Veja bem”
A ênfase comum que damos à função fática da língua indica que a visão não é naturalmente plena ou espontânea. “Ver bem” é, na verdade, desver – posto que “ver” é função biológica de um sentido. Diferentemente, desver é uma operação intencional, voluntária. “Ver” é o sentido fisiológico da visão que demanda um ponto (físico) de vista, uma perspectiva espacial material; “olhar” é um lugar subjetivo. Consequentemente, desver é, não um método de aprimoramento da visão, mas um método de elaboração de vivências comuns em experiências visuais.
O que funda o gesto poético é certa abertura que desencadeia processos, certo abrir mão que começa na própria disposição de ir. É diferente de uma disponibilidade gratuita ao “desplanejamento”, diferente de meras concessões ao acaso. Desver – que se confunde com o próprio processo poético (ou com a experiência visual) é um desapego de saída do próprio ser e estar no mundo. Não é estar vulnerável à sorte; trata-se de outro processo que, sem o artista perceber, já está em curso, mesmo quando ele ainda não se autorizou como tal. De onde eu bebo, onde encontro minhas fontes? O que aparece, o que já habita meu trabalho antes que eu perceba, antes mesmo de realizá-lo? O que gosto nas referências que elejo, e por quê? Sobretudo: quem em mim gosta? Se não há resposta clara a essas perguntas, é preciso arriscar ao menos enunciá-las; assim se pode saber o que se deseja ou o que se demanda (o que dá a ver também a falta, aquilo de que não estamos saciados). Por este meio, conhecemos não a nós mesmos (tarefa impossível), mas a dimensão daquilo que foi perdido em nós. “Somente quando não sabe o que está fazendo um pintor faz boas obras”, diz Edgar Degas.
Mas é importante não esquecer que desenho – apesar de tudo o que pode ser e das múltiplas abordagens de se encará-lo – é, sobretudo uma técnica: possui a dinâmica processual, a materialidade e liturgia regular de uma técnica. É quando o discípulo está pronto que o mestre aparece (justo quando está apto a criar o próprio mestre). Assim é que é possível inverter a equação do artista Lydio Bandeira de Mello, que diz que “se você não sabe desenhar, você não pensa a forma” – para extraírmos dela sua consequência mais radical: se você não pensa a forma, não sabe desenhar.
[1] “reparar”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/reparar [consultado em 18-09-2021].
Imagem da capa: DARIAN RODRIGUEZ MEDEROS, “The Chamber of the Earthly Delights”, 2020 | óleo sobre tela (274.3 × 121.9 cm) link
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