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  • Foto do escritorGustavot Diaz

[PROCESSOS POÉTICOS 5ª ED] ENCONTRO 1 | “Desinvenção da visão” (Parte I)

Para cumprir a difícil disposição de se assumir artista, compete ao sujeito compreender a singularidade que distingue o gesto artístico – singularidade esta, que em geral se chama poética. E o meio mais eficiente de expressão desta singularidade é o conhecimento das referências, dos traços pendulares, dos campos semânticos e lexicais do trabalho – ou seja, a constituição simbólica, ou linguística de tal fazer singular. É isso que denomino “articulação plástico conceitual”, cuja operação pode esclarecer o artista quanto aos recursos expressivos de sua atuação.

KEVIN MOORE, “Scream” (óleo sobre tela), 2022 @thechromatickid

Este é o tema da 5ª edição do PROCESSOS POÉTICOS – que propõe orientar artistas e aspirantes na constituição do fazer autoral. É justo nesse fazer que o aspirante se autoriza, é na prática refletida onde assume autoridade no seu campo e adensamento das articulações de linguagem que o tornam patrimônio seu, pessoal e intransferível. Mas para fazer, é preciso investigar coletivamente o como, o quê e o porquê se está fazendo.

Na dúvida, é melhor saltar. Depois do salto, há 50% de chance de algo surpreendente acontecer; antes dele, a estatística cai a zero. Em todo caso, nosso medo maior é do sucesso, não do fracasso. Mas, de certo modo, já somos fracassados, ainda não conseguimos construir condições de realizar nossos grandes planos. A boa notícia é que ainda nos damos o direito de planejar. A procura deste Curso revela que ainda acreditamos poder executar os projetos que arquitetamos – ainda nos damos o direito de sonhar, enfim. Essa última palavra precisa ser qualificada, do contrário funciona como abstração ideológica: “sonho” aqui quer dizer assumir o desejo; “saltar” significa viver a vida em sua radicalidade.

É disso que se trata a arte, em última instância: introduzir no imaginário possibilidades inimagináveis.


Por isso em toda criação há algo de radical; concretizar o que um dia foi impensável é revolucionar o campo das possibilidades. Isso é “forjar mundos possíveis”, como os textos de curadoria gostam de frisar; dar a ver o que está fora do alcance cotidiano. Alguém precisa fazer esse papel. Como a regência do capital é absolutista, todas as coisas no mundo dos objetos perderam sua forma em favor de uma única função: o lucro. Assim é que perdemos a dimensão estética, só considerada pela sociedade de consumo como meio eficaz de agregar valor aos produtos, ou quando é vetor de entretenimento. A fruição desinteressada compatível com a arte – a velha suspensão voluntária da crítica não encontra lugar no mundo neoliberal. Note-se a expressão “voluntária” na fase de Coleridge – voluntário quer dizer livre. Quando a suspensão não é livre, quando acontece sob injunção do sofrimento (caso do entretenimento), ou imposta por necessidades animais (quando agrega valor em função do lucro), a dimensão estética corre o risco de perder sua coordenada última, seu único significado: expandir o campo da experiência.

Finalidade e função

Eis outra face do medo de encarar o ofício da arte – assumir-se artista acarreta essa outra implicação: o pesado ofício da liberdade. O artista dá o exemplo, realiza operações completamente inúteis à engrenagem social; toda obra artística é inútil ao sistema (justo porque demanda liberdade em relação à ordem do consumo). Como mencionei, alguém precisa desempenhar esse papel, alguém precisa representá-lo a fim de que outros tenham referência desta liberdade – a sublime liberdade que é operar o inútil, o impossível, o impensado.

Se todas as ações humanas tivessem finalidade, por que meios aconteceria o imprevisto, o acidente, a surpresa, a novidade? Finalidade e função são derivações projetivas da ação, ao se darem sob condicionantes pré-estabelecidos, abrem pouca ou nenhuma brecha ao inesperado da experimentação e o do exercício intuitivo da arte. Esse lugar de “devaneio”, como diz Gaston Bachelard, de disposição à inadequação e à estranheza ousa desafiar a ordem dos papeis estabelecidos, da disciplina, da normatividade. Se não houvesse o artista a desempenhar tal papel e ocupar tal lugar, estes perderiam representação no seio social, como uma frota de navios que só conhecem uma única rota, e jamais se permitem desbravar outros mares e continentes; sempre é necessário haver um primeiro que desafia os rumos e altera as coordenadas da experiência.

JOÃO SANTOS, “A faca e o queijo da mão” (pintura digital), 2023

Na vida, a função e finalidade apenas reproduzem problemas, pois reiteram no agir, indefinidamente, as mesmas condições de operação. Na ciência, função e finalidade instituem e conservam o conhecimento científico, reproduzindo o esquema dos saberes, a ordem disciplinar. Mesmo no interior da prática artística função e finalidade reduzem o campo de possibilidades expressivas, justamente por eliminar da produção o acaso, a inspiração, a aventura indeterminada e sem volta… em nome de uma função ou finalidade.

Enfim, a arte não deveria ser aparelhada sob a égide da “função” porque não pode antecipar seus resultados. Só assim ela se mantém livre para o impossível, só assim está apta a nos apresentar o inimaginável. Sem tal liberdade, o artista dificilmente constituirá uma poética autônoma.

Parágrafos a um jovem artista

No Processos Poéticos não julgamos se a produção dos integrantes é boa ou má – isso é uma questão em geral de ordem subjetiva que interessará ao público lá adiante, depois da obra concluída e exposta. Nossa preocupação é com a eficácia simbólica (para usar o termo de Lévi-Strauss) – quer dizer, avaliar se a produção dá resposta à pergunta que ela mesmo enuncia, e que tipo de perguntas está se propondo enunciar.

§1. O artista é sempre jovem no seu ofício, precisa operar sempre a um passo do desconhecido; quando domina uma técnica ou um fazer, deve saber a hora de abandoná-lo: sua melhor obra é sempre a próxima. Se não for assim, condena seu trabalho a uma eterna repetição, e a ele mesmo como repetidor de si – como diria Picasso, “copiar outras pessoas é necessário, mas copiar a si mesmo é patético”. Também Michelangelo no leito de morte teria dito: “morro logo agora que aprendi o alfabeto de minha profissão”. Não é apenas humildade do mestre florentino, certamente devia estar ciente de que a arte não pode estagnar-se, a transformação dialética é sua essência. E nem a transformação, nem a dialética são plenamente capturáveis por uma técnica ou uma teoria; é preciso, pois, estar disposto a mudá-las, sempre.



§2. Uma definição pobre de “estilo” nos leva a um paradoxo: o artista passa a vida procurando seu “estilo”, sua “expressão pessoal”, etc. Acontece que a vida muda no curso da existência; se a arte exprime a vida, logo deve mudar também. O problema da concepção comum de estilo é supor que este seja fixo, que será uma “marca” do artista a se repetir em toda sua obra. Entretanto, consideremos a conceituação de Paul Valery em seu belo livro Degas Dança Desenho, onde entende o estilo não como o acerto, mas como o “erro” do artista. O que Valéry que dizer é que, onde o artista acerta, todos acertam, onde ele erra, só ele erra desse jeito. Assim podemos pensar no estilo não como uma forma estilizada que devemos encontrar, mas como algo que irá transparecer instintivamente em tudo o que fazemos. Dito isso, melhor conselho quanto ao estilo é: não se preocupe com ele.     

§4. Agir de forma intuitiva e “autodidata” é o meio mais efetivo para uma ação limitada e vulgar. Aprenda seu ofício. Que ofício é esse? Para o artista visual, é “pensar a forma”. Forma é linguagem, e toda linguagem tem suas regras. Um artista que não domina os procedimentos relacionais da forma semelha ao estrangeiro balbuciando uma língua desconhecida. Qualquer língua é uma produção comum, coletiva e em movimento; aprender sozinho o que se poderia mais rápido e melhor ser aprendido com alguém, ou é genialidade, ou é teimosia; se você é teimoso, estude e conheça o que outros fizeram, você não inventou a linguagem; se você for gênio, estude ainda mais.

§5. A técnica é a única coisa no mundo que pode guiar sua própria desconstrução. A velha frase “primeiro tem que aprender a construir, depois desconstruir”, além de batida, não sentido nenhum. A desconstrução não é um aprendizado: é a consequência inevitável de todo fazer operativo na arte. Voltemos a Michelangelo, cuja obra atesta majestosamente como o produto de toda forma artística é precisamente sua desconstrução: a forma criada em seus trinta anos de vida (Pietá, Sistina, Moisés, etc) difere substancialmente daquela que produziu aos sessenta (Capela Paulina, Juízo Final, etc), e ainda mais da que produziu perto dos 90, antes de morrer (Pietá de Florença, Pietá Rondanini).

BERLINDE DE BRUYCKERE, “Piëta”, 2008

A linguagem artística é a linguagem vista pelo avesso, pela via da não-eficiência (como vimos a respeito da funcionalidade). Quando domina uma linguagem, cabe ao artista precisamente desarticular seu encadeamento lógico para disso extrair efeitos expressivos. Logo, a desconstrução é condição do fazer. Por outro lado ainda, a radicalidade buscada pela arte deve ter à sua disposição toda e qualquer técnica, todo e qualquer procedimento, enfim toda liberdade operativa e conceitual de modo a dar conta de plasmar as mutações ilimitadas da existência. Domine sua técnica, mas não seja dominada por ela; e pare de querer desconstruir seja lá o que for – a própria técnica em operação no regime de sua poética irá orientar onde e como precisará ser desconstruída a fim de alcançar e responder às metamorfoses da vida do artista. A descontrução é uma construção, os artistas sabem disso.

§6. Embora tema amplamemnte subjetivo, não é difícil distinguir produções que possuem qualidade formal e densidade poética; por elas o artista se orienta melhor. Podem ser produções da cultura erudita, da cultura popular, ou ainda o mais representativo da cultura de massa, mas a referência do artista precisa ser sempre a operação mais sofisticada possível dos campos estéticos correspondentes. Um filtro seguro para julgar qualidade é o tempo. Para o artista, a produção cultural é a matéria de seu ofício, é sua obrigação conhecer, mapear o terreno do simbólico em suas diferentes manifestações. Para ilustrar: você pode viver a vida comendo PF e fast food, mas o que justifica nunca ter experimentado pratos sofisticados? O contrário também é verdadeiro.

 

Esta é a primeira parte do Encontro 01 do Curso PROCESSOS POÉTICOS0 (5ª ed), que inicia em 01 de abril de 2023. Para informações e reservas de vaga, consulte o site processospoeticos.com ou entre em contato pelo email gustaveaux@gmail.com.

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Capa: SANTI PINA, (processo) 2022, óleo sobre madeira

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