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  • Foto do escritorGustavot Diaz

[PROCESSOS POÉTICOS] QUARTA AULA | Poéticas da Figuração Contemporânea

Apresentamos aqui uma hipótese de interpretação da Figuração Contemporânea, buscando afastá-la da vacuidade do conceito genérico de “pintura contemporânea”. Acreditamos estar em curso um movimento que, pela densidade, quantidade e abrangência, pode vir a definir um momento histórico sui generis. Para outros desenvolvimentos, clique aqui.

LEX KANEVSKY, “J.W.I. in Her Room”, 2015 | óleo sobre tela (48′ x 44″)

Levantamos até agora, no curso Processos Poéticos um espectro de conteúdos acerca da experiência – desde o momento em que é estruturada pela perspectiva (método de “representação” instaurador das coordenadas que possibilitaram o sujeito da experiência na arte), até seu uso político-ideológico (com o exemplo maior do programa de política cultural empreendida pela CIA nas décadas de 50/60 em todo o Ocidente). Tudo isso a fim de dialeticamente compreender o sentido da Figuração Contemporânea, uma vez que ela não é representacional. Propomos pensar tal produção como parte de um processo de continuidade com a Arte Moderna, ou seja, como mais um fruto do rompimento com a concepção tradicional que teve início em fins do século XIX.

O que caracteriza a arte do século XX, a chamada de “Arte Moderna” – para além de uma compreensão essencialista e formalista, é que o código dos objetos artísticos transparece; emergência do código que traz implicado o tempo presente da experiência do sujeito: quer dizer, o lugar e tempo, tanto do artista quanto público constituem o processo artístico integralmente. Apresentada como linguagem (ou seja, um meio, nunca fim em si mesma) a arte se contrapõe à visão clássica que pressupunha nela uma “janela para o mundo”. Se o sujeito cartesiano comportava a transparência de si mesmo (como se não houvesse um corpo e suas circunstâncias, mas apenas a instância intelectiva do ser), à obra de arte se exigia a mesma “transparência” (também como se ela não tivesse corpo, matéria nem códigos de linguagem).

No chamado Modernismo, a obra não comporta a projeção de um suposto sujeito que me espelhe: o que entrega é apenas forma. Tal como concebe a autora Rosalind Kraus, a Arte Moderna se aproxima, assim do Estruturalismo e, portanto, da Psicanálise – área de análise que também concebe a realidade enquanto forma (registro simbólico), sem a pressuposição de um sujeito absoluto a lhe habitar o centro, tampouco qualquer experiência de continuidade do real. Noutros termos: a Arte Moderna não se compôs de dilemas formais tendentes inevitavelmente à abstração (como se supunha na versão formalista). Ela tende sim para o código e para a matéria expressiva, ou seja, para a experiência perceptiva do público. Ninguém olha uma tela moderna julgando encontrar nela a clássica “janela”; trata-se, sobretudo de forma, de síntese plástica nos códigos de uma linguagem.

ULIEN SPIANTI, “Study” 2014 | óleo sobre papel (50x65cm)

Figuração e contemporaneidade

Lembramos que qualquer visão essencialista da arte representa um problema de ordem filosófica. A suposição de que as coisas existam por si mesmas, e que as imagens, simplesmente comunicariam este suposto “ser em si” discorda de um princípio caro ao Estruturalismo: o que vemos são imagens; mas somos incapazes de dizer o que nos dizem de modo inequívoco. O procedimento básico da percepção é prospecção projetiva. Como vimos no encontro anterior a formulação célebre de Lacan: “a essência da comunicação é o mal entendido”. O essencialismo, claro, é também um problema de ordem política: se existe essência, existe destinação e toda ruptura é problemática.

Em outra oportunidade, fizemos uso da Capela Sistina como exemplo de aplicação de nosso método do “desver”. O desver revela a estrutura existente não “por detrás”; mas, justamente “em frente” às imagens. O ato de desver produz o efeito que denomino de “escumadeira”: restando visível a fluidez das projeções e ideologias sobre as imagens, ele traz à tona o que é realmente sólido nelas (embora, do mesmo modo, instável e fluido), permitindo ao observador concentrar-se no “concreto aparente” de sua arquitetura. A partir desse mesmo “método” é que aqui propomos algumas reflexões sobre a produção figurativa recente, a que referimos como Figuração Contemporânea. (FC)

ANESSA BEECROFT “Le member fantome”

Enfatizamos que ela deve ser lida em um processo de continuidade à concepção modernista enunciada (“arte como linguagem”), tendo ambas como lastro comum a autoconsciência do fazer poético como operação linguística. Em outras palavras, a FC precisa ser lida como forma, não como representação. Abordando condições experienciais atuais do sujeito por meio de questões síncronas a ele, não é ao mundo “fora da obra” que esta produção se dirige: não se pode esperar dela o mesmo efeito de mímesis efetivo nas escolas histórica. A FC se encaminha para a contemporaneidade, afastando-se de essencialismos que a identifiquem com toda produção artística clássica.

Enquanto as categorias tradicionais da pintura, escultura, etc. são “sínteses” construtivas (adição na primeira, subtração na segunda) que geram códigos de uma linguagem autônoma; a fotografia, por sua vez é “análise”. Explico: se a pintura busca “reconstruir” (a experiência do) o mundo através dos elementos da linguagem visual, a fotografia “decalca” o mundo: algo do objeto está efetivamente presente nela (no caso, a luz física que materialmente se imprimiu na película fotossensível). A pintura é a forja da matéria na linguagem; a fotografia é a matéria mesma – não havendo neste último caso, portanto, “representação” (uma vez que a condição de qualquer representação é justamente não ser a coisa). Representação é, sobretudo encenação onde as coordenadas da experiência são (re)postas em cena a fim de produzir experiências relativas ao mundo através de efeitos de identificação e semelhança. Neste sentido, a fotografia não “representa” propriamente o mundo: ela apenas o duplica, é uma extensão dele. De fato, a subsunção da figuração à mímesis reduz o sentido das imagens: dizer que o cinema, por exemplo, representa o mundo real, significa dizer que ele é incapaz de criar elementos autônomos que estejam fora do mundo. O vínculo entre imagens e coisas é bastante complexo, além de não ser fixo.

O poder da fotografia é o de revelar a natureza ficcional constitutiva da própria realidade. Ela possui uma condição, por assim dizer “espectral”, uma vez que capta efetivamente a luz; e isso não é residual: trata-se, afinal da própria linguagem da luz. A luz é uma dimensão própria das coisas, uma dimensão capaz de iludir constituir a coisa em sua totalidade (tanto é que fotos nos enganam, podem ser usadas como prova em um julgamento, etc.). Mas a “imagem” é apenas um traço imaginário – e por consequência, aleatório das coisas. Eu poderia sentir uma lasanha, por ex. melhor pelo cheiro e pelo gosto do que pela imagem; poderia sentir melhor uma porção de argila através do tato, ou ainda perceber melhor a noite através da brisa do que pela imagem.

Uma imagem é uma imagem; é apenas uma parcela da coisa, a qual impomos arbitrariamente uma disposição “representativa” da experiência fenomênica.

OSÉ LUIS CORELLA, “Rojo” 2002 | óleo sobre madeira (74×63 cm)

Qual o sentido da Figuração Contemporânea?

Ante essas duas posições da pintura versus fotografia (síntese x análise), que qualidade distintiva possui a FC, em especial o Hiper-realismo? Respondo: a de criar condições de intervenção no mundo, para além de apenas representá-lo. O Surrealismo intuíra a compreensão de que, se o “real” do sujeito é a realidade caótica do inconsciente (que possui, entretanto uma estrutura de linguagem, a exemplo dos fractais), então a representação do caos – e não a aparência mimética da experiência cotidiana, é que colocaria em cena algo mais próximo de uma “verdade do real”. O real, ele mesmo, é efeito de coordenadas simbólicas, um efeito editável. No Dadaísmo e no Surrealismo, a fotografia e as colagens, ready mades, instalações, assemblages, etc. quebraram a cadeia de transmissão da correspondência mimética com o mundo aparente das formas; mas ainda assim subscrevia-se a um certo sentido de representação, ancorado na percepção clássica. A FC, diferentemente, em que pese ser ela síntese, propõe a experiência de uma realidade para “além do real”.

A Figuração Contemporânea não rearticula tão somente os elementos da linguagem visual com fins de representação de uma realidade qualquer (seja objetiva ou subjetiva); ela vai além: recria no suporte um universo autônomo, que curiosamente excede a correspondência com o mundo fenomênico da experiência. Uma obra do FC “cria uma experiência”, ao invés de reproduzi-la; uma experiência que não encontra paralelo no mundo. Portanto, não se trata de representação; sequer ela atribui para si mesma tal função.

Parece, em princípio, um oximoro dizer que a Figuração Contemporânea e o Hiper-realismo não sejam “representacionais”; mas qualquer um que conheça minimamente os procedimentos técnicos de sua execução reconhecerá com facilidade que o que está em jogo ali é pura abstração, em especial no método do Hiper-realismo, o qual se assemelha muito mais ao Pontilhismo, por ex. do que à pintura acadêmica. Seu efeito é o mesmo: pequenas formas que, pintadas não simulam nenhuma uma experiência do mundo, mas criam uma experiência real (quando vista à distância), que não se pode encontrar a não ser na imagem. Ou seja, não há no mundo qualquer correspondência, qualquer referente: o código na obra cria um universo único que a partir de uma coerência interna própria (que pode ser independente do mundo exterior). Algo semelhante se dá com a performance, que não figura, nem representa, nem simula nada, apenas cria uma experiência nova e autônoma no ato em si – irrepetível e carnal como toda experiência exige.

É notável a presença desta concepção no discurso mesmo de artistas da FC, onde não é expresso um desejo de imitação da realidade em seu aspecto prosaico: “eu quero pintar a realidade, mas de uma maneira diferente”, diz o pintor contemporâneo hiper-realista Tjalf Sparnaay num documentário sobre a sua obra. Ou “eu quero impressionar alguém com alguma coisa que ele conhece!”; ou ainda, “eu desenho um real mais real que o real”, segundo o artista Paul Cadden. Enfim, a representação não passa de um tema na FC, uma rede de tensões da qual ela se alimenta.

AURO C. MARTINEZ, “Impact Painting (prototype)” 2018 | óleo sobre tela

A relação entre esses artistas figurativos e a fotografia, os softwares de edição de imagem e o mundo virtual também demonstra não estarem a serviço de uma “cópia duplicada” do real que simule experiências referenciadas exclusivamente no mundo. O que está em jogo não é a réplica do fenômeno da imagem enquanto aparência e mímese – mas a criação de um real “dentro do real”, capaz de desencadear efetivamente experiências ao unir estímulo estético e direcionamento narrativo. A experiência “mais real que a realidade” não é outra, senão aquela sustentada pelo sonho ou pelo imaginário – que procura dar expressão e substância a nossa realidade mais profunda, jamais encontrada no mundo.

Emulando coordenadas da experiência para além da visualidade imediata – por onde certo “Real” inconsciente retorna (não é à toa que o movimento flerta continuamente com o Surrealismo) – a nova figuração tensiona o campo da representação, sem desagregá-lo formalmente. Deste modo, podemos pensar o curto-circuito entre a aparente “representação” realista e a intervenção na textura das imagens (submetidas muitas vezes a uma edição brutal, presente em todas as etapas do processo artístico) na FC como um campo de discussão acerca do presente e condição para uma nova interpretação da figuratividade.

 
Capa: NICOLA SAMORI “Lienzo”, 2014 (óleo sobre metal)
Este texto é parte do conteúdo do CURSO Processos Poéticos – cuja primeira edição acontece em Maio e Junho de 2021. Inscrições para a fila de espera para a segunda edição podem ser feitas pelo email gustaveaux@gmail.com.

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