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[PROCESSOS POÉTICOS] SEGUNDA AULA | Desinvenção da visão: Desenho como Experiência visual (Parte 02)

PARTE II

Continuação do texto “[PROCESSOS POÉTICOS] PRIMEIRA AULA | Desinvenção da visão: POÉTICAS (Parte 01)“. Material complementar integrante do conteúdo do curso Processos Poéticos

GOLUCHO, óleo sobre teçla

Antes de seguir com outro importante viés do pensamento de Paul Valéry – o qual versa justamente sobre a destinação da obra, ou seja, o público (definido por ele como “consumidor”), procuraremos escrutinar os diferentes momentos da poiesis. Sendo o público o último elo implicado na complexa dialética do processo criativo (meios/fins, técnica/conceito, ação/recepção), é preciso entender primeiro como a base, o arcabouço ou bastidores da criação (termos do ensaio de Allan Poe) são armados.

Para expressar, é preciso “o quê” expressa; este não encontrará saída, entretanto, se não encontrar antes um meio pelo qual se expresse [1]. É claro o paradoxo aí, que Valéry resolve com a intuição da práxis: sua ênfase no aspecto construtivo “pode ser considerada uma chave de leitura relevante na criação poética”*. *OLGA NANCY PENA CORTÉS, 2016

A criação surge fundamentalmente dessa impossibilidade: a disrupção do novo invalida as próprias bases de seu surgimento. Se ele é único, é precisamente sua não-anterioridade que faz com que seja “criação” (do contrário, seria repetição de formas pré-existentes). “O prévio e o planejado não se confundem com a criação anterior e nem prediz a criação que virá” cita a professora Olga Nancy acerca de concepção valeriana, onde a criação “é uma construção, na qual a matéria poética não está pronta no universo, e não surge do nada.” (NANCY, p. 28). Assim, a obra é criação (nova), mas está previamente subsumida ao enquadre de referências, técnicas e materiais disponíveis ao artista: nem existe ainda, tampouco deixa de estar presente, uma vez que surge da articulação poética dos elementos do mundo. 

ALYSSA MONKS, óleo sobre tela

Valery é pouco objetivo ao enunciar o ponto de partida de todo o processo, definindo a inspiração como uma “energia espiritual de natureza especial”. Se, por um lado concorda com Aristóteles – filósofo que criticava o deus ex machina, defendendo a arte como tekné (livre de inspirações divinas e dependendo tão somente da técnica) – Valéry ainda é idealista quanto à origem do fenômeno criativo. Uma suposta “energia” que o “espírito” captaria são termos bastante abstratos; porém, como disse, é na práxis que o poeta ancora a criatividade, mantendo-se “atento às áreas de conhecimento de sua época, das quais adota linguagens e estruturas para compor seus poemas sem abandonar os clássicos” (idem, 29).

Para a tomada de decisão que inaugura o ato da criação, Valéry refere-se à abertura para enfrentar o caos, cujo discernimento permite-lhe retirar do mesmo o que ele pode fornecer de conhecimento.  OLGA NANCY CORTÉS, 2016

Os procedimentos técnicos, mesmo não orientados para um fim determinado, encontram balizas e margens num conteúdo maior, mais ou menos delimitado pelo elaborar de nossas experiências. A técnica é “meio expressivo”; depende, portanto de um fim a que se destine. Precisar esse fim seria projetar no futuro a intenção presente (o que frustraria a novidade); contudo, encarar o caos do real sem o aparato da técnica é também impossível. De novo, o paradoxo sobre o qual se situa o processo criativo. 

Buscando superar esse paradoxo, ousaremos incluir a “experiência visual” do artista como uma alternativa – experiência essa sensível tanto às implicações da forma e suas coordenadas, quanto às questões que o mundo suscita. Não sendo ainda propriamente a técnica, tal experiência possibilita a articulação entre a técnica e (ao mesmo tempo) a expressão do olhar (para além da visão fisiológica).

Tela de GOTTFRIED HELNWEIN (óleo obre tela), e sua modelo

Desenho como experiência visual

Até porque a visão é produto do imaginário (ou seja, do olhar), é esse olhar que deve ser educado e “treinado” no processo criativo. Aqui a imagem do viajante é útil: ao se equipar para uma jornada, quem viaja necessita antes saber aonde ir. Após decidir – vou para aquele lado! demanda um tipo específico de preparo e bagagem. A experimentação é necessária, porém perfeitamente inútil sem um fim que lhe dê sentido… Diferente de uma viagem, o processo artístico não pressupõe um fim determinável – o caminho das descobertas poéticas se faz no próprio caminhar; porém, sendo a arte metabolização de experiências visuais (matéria prima do trabalho do artista), estas vêm dar início a todo o processo, servindo ao mesmo tempo de contorno a ele. O substrato da elaboração poética, enfim, é a experienciação dos conteúdos da vida, do mundo, assim como os eventos do próprio campo estético.

Exemplos clássicos como Leonardo, famoso pelas listas diárias de afazeres, ilustram o que quero dizer:

Ele queria saber por que razão as pessoas bocejam, como andavam no gelo em Flandres, métodos para realizar a quadratura do círculo, o que faz a válvula aórtica se fechar, como a luz é processada pelo olho e como isso influencia a perspetiva em uma pintura. Ele se instruiu a aprender sobre a placenta do bezerro, a mandíbula do crocodilo, a língua do pica-pau, os músculos do rosto humano, a luz da lua e os contornos das sombras[2]. ISAACSON, p. 551

Michelangelo, mais pragmático que Da Vinci, deixou, no entanto um legado de mais de 300 poemas; era um erudito conhecedor de Dante Alighieri e transitava na mais alta cúpula do humanismo renascentista; Rubens, prolífero pintor barroco, também era um excelente diplomata; e para citar um exemplo de um contexto mais nosso aqui: Vinicius de Moraes – amigo de figuras tão díspares, como Orson Wells e Baden Powell, atuou em diversas frentes e movimentos musicais. Todos eles possuíam essa curiosidade epistemológica que promove a imersão na cultura, na alteridade, na pluralidade – fatores que minimizam o impacto dos estereótipos (esses freios da visão que condicionam o olhar à cegueira).

Múltiplas interlocuções consolidam um espectro cultural amplo, capaz de dar densidade à experiência visual, e guiar o artista para o próprio desver: que é uma forma de duvidar daquilo que se vê, questionar os limites das convenções e prevenir-se ao enquadramento a que a visão está submetida. Sendo o artista capaz de desver, será capaz de ver o que ainda não está ali e necessita ser posto em linguagem. Daí é que surgem os infinitos temas da produção artística. Quando enuncio o Desenho como experiência visual, me refiro a uma atitude ética em relação à visualidade. O Desenho, assim está além do pragmatismo técnico (e aquém de uma expressão puramente conceitual).

Explico: Desenho não são as marcas de grafite no papel, nem a ação de desenhar; quem efetivamente desenha é o olho. A síntese que serve como verdadeiro modelo ao desenho se dá no olhar do desenhista – o produto final é apenas expressão plástica dessa síntese. Apesar de ser resultado da práxis entre elaboração visual e expressão material – o Desenho abrange um arco muito maior que inicia na qualidade das experiências visuais do artista. O que ele vê quando olha o modelo: aí está a chave – se ele vê apenas “forma”, seu trabalho está destinado a ser apenas composição; se vê apenas conceito, sua expressão estética estará comprometida. A experiência visual deve abranger todos esses elementos simultaneamente, uma vez que sua natureza é processual e não cessa de refazer-se.

A experiência visual é aquela pela qual o olhar passa permanentemente: já está no olhar – apenas não a percebemos. Ela aparece nos interesses do sujeito; na regularidade de suas escolhas e afinidades; na gramática de afetos que o situa no mundo. Basta dar-se conta: a matéria poética está em tudo, em cada objeto, cada mínima ação, cada cena da orquestração incessante de eventos que é o mundo – o problema é que não percebemos, deixamos de ver e, em lugar disso, enxergamos coordenadas pré-determinadas de um mundo subsumido à funcionalidade.

Àquele que cria imagens, a atitude poética da observação é imprescindível. E o melhor meio de educar a visão é “desvendo”. Gosto do termo, sobretudo porque comporta um “desvendar” – suficiente para ilustrar o conceito. Desver é perceber o mundo desde esse olhar (ou seja, desse lugar) onde tudo é alheio à imediaticidade e os objetos existem numa dimensão para além da destinação a que são condenados. O Desenho como experiência visual é uma forma pela qual as coisas banais do mundo adquirem relevância; e onde nada mais permanece insignificante.

Mas de que forma implicar a experiência visual na expressão pessoal?

ROBERTO BERNARDI, “Next stop to paradise” | óleo sobre tela

O público consumidor

Agora que nos referimos ao processo criativo, cujo produto é resultado de uma dialética onde fins e meios se confundem (eis porque é preciso conhecer a ambos – técnica e conceito, de forma conexa por meio da experiência visual), podemos então pensar no público. Vimos que a criação não é um processo cego: possui certa circunscrição (experiência visual do artista); um meio (conhecimento das coordenadas da forma através da técnica), e um fim (o público).

Compreendendo o ato criador como resultado de um processo de construção surgido a partir da escuta de uma espécie de espanto que acomete o poeta, Valéry salienta que tal escuta só se transforma em poesia por meio “de uma relação entre um certo ‘espírito’ e a Linguagem”. [A obra valeriana] salienta a tese de que a criação poética ocorre por meio de um ato intelectual e, portanto, exige estudo, reflexão, disciplina e dedicação. OLGA CORTES, p. 21

A visão da obra como “ato intelectual” (conceito de profundo alcance ulterior), coloca o processo – com seus percalços e acidentes, no centro do fazer poético. O trabalho artístico vira assim uma metodologia de como fazer vir à tona “a rede emaranhada de sensações, sentimentos e afetos pela via do trabalho intelectual” (idem). Isso altera a equação artística: coerente com sua crítica ao engessamento e às regras da Academia, Valéry sustenta que o que importa é o processo de subjetivação do artista e o que transborda dele – de que se deduz, justamente que a obra é efeito de um processo, não mais aplicação de uma cartilha: “É o trajeto que o conduz à realização que se torna envolvente, o movimento em direção à, o processo enquanto está ocorrendo, já que ‘é a execução do poema que é o poema. Fora dele, essas sequências de palavras curiosamente reunidas são fabricações inexplicáveis’.”

Contraparte essencial deste “ato intelectual” é o outro – o público. “O leitor se constitui no horizonte que atrai a energia criativa – a inspiração/o instante – é com ele e para ele que o poeta assume a fabricação do poema.” (idem, p. 29) Com a proposição de que a obra não se completa, senão pela visão do consumidor, abrindo-se “para um futuro aleatório e imprevisível”, Valéry adiantava-se em um século à “obra aberta” de Umberto Eco (“Obra Aberta: Forma e Indeterminação nas Poéticas Contemporâneas”, 1962):

a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante. Essa condição constitui característica de toda obra de arte (…) e tal ambiguidade se torna – nas poéticas contemporâneas – uma das finalidades explícitas da obra, um valor a realizar de preferência a outros”[3] ECO, 1962

Por fim, vale ressaltar que o “ato criativo” de Valéry prepara o terreno para transição da concepção moderna para a pós-moderna que se daria na década de 70 do último século:

O ato intelectual promove a ação e a deliberação, o projeto construído e o deixar-se conduzir pelo som, pelo sentido, pelo emaranhado organizado do todo que compõe uma obra poética. Entre o inteligível e o sensível, o intelecto busca a conexão de ambos na busca de uma linguagem elaborada, retirada de sua mesmice cotidiana.

Esse trecho de Valéry poderia constar em qualquer texto curatorial da arte atual. O “cerne da criação” está no ato intelectual – não no artesanal, não na técnica. Não é difícil constatar aqui sinais já de um descentramento, na operação artística, do Eros, da estesia dos sentidos – que de lá para cá tenderá vertiginosamente ao “conceito” e à natureza teorética, tal como é o da Arte Contemporânea.

y u n | óleo sobre tela, 2021

Conclusão

Em resumo, eu insistiria num ponto fundamental: a rearticulação técnica se dá em função de inflexões, de novas injunções paradigmáticas. Saibamos interpretar: uma solução plástica – ou bem replica a tradição, ou altera suas estratégias. Como qualquer operação, ou ela é aprendida, ou inova; porém, o que define esta inovação é a contraparte própria do artista, aquilo que é resultado de sua perspectiva única, do lugar subjetivo de onde ele, e só ele, enxerga o entorno. Logo, mesmo a parte propriamente criativa do artista resulta, inevitavelmente da observação de um “já visto”, algo que já foi cifrado na gramática do mundo.

Qual a matéria de sua percepção subjetiva? É a matéria do simbólico; os elementos já à disposição na cultura. Se não houver alteração no olhar do desenhista – não haverá alteração em suas estratégias plásticas, quer dizer, na “síntese plástico-conceitual”, a qual consiste em parte de escolhas conscientes. Plástica e conceito são indissociáveis na criação; se não há mudança do conceito (olhar), não haverá mudança na ordem da forma. Por isso a experiência visualque articula o lugar de onde se vê, e ao mesmo tempo, o que se vê.

Um exemplo claro disso é a alteração nas relações de contraste tonal operada por Édouard Manet (explicamos detalhadamente em vídeo neste link). Uma alteração absolutamente específica, no entanto percebida pelo público geral à época; uma alteração que pressupunha um ponto de vista novo e anunciava uma transformação: as soluções representacionais disponíveis não eram mais capazes, nem suficientes, para expressar os eventos do século.

É significativo que uma alteração tão pontual (e até hoje bastante desconhecida) tenha causado tanta rejeição pelo grande público na segunda metade do século XIX. Talvez devido ao incômodo – não quanto à inovação plástica (a França do período era bastante resiliente às transformações no campo da visualidade), mas quanto à visão radicalmente nova de sociedade que tal inovação implicava. Além disso, Manet traía o pacto entre arte e realidade – o pacto da “representação”, que a tradição conhecia por mímesis. Com Manet, o lugar do artista era o que havia sido alterado; este reivindicava o direito de se pronunciar e criticar a ordem social, e não somente representá-la. Isso alterava, afinal, também o lugar do público.

A opinião do artista, claro, especialmente à época, já possuía relevância. Porém, tanto a apresentação de Manet, quanto a de seu contemporâneo Gustave Courbet, que arriscaram manifestações “realistas” da realidade, estavam fora do enquadre de referências do período. Aqui é preciso retomar um paradoxo da expressão: se é representação, não pode ser realista. “Realista” é aquilo que condiz à realidade; e justamente onde não há realidade, é que pode (e deve) haver representação. Do contrário, a mimesis fica invalidada. Enfim, o problema pressentido pela sociedade do período, penso eu, era que Manet e os artistas realistas – apresentando algo diferente do que estava então no mundo, violavam o papel estrito atribuído às artes de “representar”, quer dizer: interpunham uma realidade outra, intervinham no status quo.     

CAROLE FEUERMAN, escultura

As violentas alterações formais do Impressionismo – o qual introduzira disciplinas estranhas ao espectro e aos interesse da arte, haviam sido rapidamente incorporadas, em decorrência da estrondosa fama do Salon dos Refusée. Courbet, que lançara seu pioneiro Salão dos recusados em 1855 (bem anterior ao dos impressionistas), nunca foi admitido… até hoje! É conhecida a censura de sua obra A Origem do Mundo (pintada em 1886) de perfis do Facebook. A censura diz que à arte não cabe mexer nos costumes, interferir na moral, ou pautar a discussão de tabus – com especial interdição ao tabu da sexualidade. O artista pode falar de tudo: ninguém verá problema algum, até que ele fale abertamente sobre sexualidade. Sexo se pode fazer, e se pode falar sobre; representar nunca! Por quê? Porque a interdição do sexo mantem a ordem vigente no mundo.

Nosso tema aqui não é a polêmica, mas sim os processos no subsolo da criação artística. Esperamos com essas reflexões ter desenvolvido um pouco mais o tema de nosso curso “Processos Poéticos – conteúdos sem os quais o artista corre o risco de continuar reproduzindo soluções estéticas e reeditando o passado no seio do presente (muitas vezes, sem nem mesmo saber).

A arte não é sobre o artista; a sua voz não é a dele; a sua voz é forjada no mundo: nos signos, nas articulações significantes e no valor dos simbolismos, na gramática, no que é ou não é permitido verbalizar. A contribuição do artista só se torna efetiva quando ele se dá conta, e porventura rompe com os receituários de valores já incapazes de traduzir as transformações operadas a cada segundo no mundo.

 


[1] Há sempre o risco de se recair em etapismos estereotipados, principalmente porque o que é meio pode em outro momento ser fim e cada um dos elementos do processo assumir diferentes papeis durante a criação – nos referimos a cada um de modo distinto apenas para efeito didático. [2] ISAACSON, W. Leonardo da Vinci. Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2017. [3] https://obenedito.com.br/ambiguidade-como-valor/

 

Bibliografia

  1. VALÉRY, Paul. Lições de poética, São Paulo: Âyiné, 2020.

  2. CRARY, J. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. RJ: Contraponto, 2012.

  3. CORTES, Olga Nancy. A criação poética na perspectiva de Paul Valéry. v. 2, n. 1, p. 22-31, jan.-jun. 2016, Scriptorium, Porto Alegre, 2016.

Imagem da capa:GUSTAVOT DIAZ, “Per(ver)somatógrafo I: Laranja Mecânica”, da série JANELAS PARA NÃO VER, 2020 | carvão e papel sobre Montval (50x65cm)

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