Gustavot Diaz
[PROCESSOS POÉTICOS] TERCEIRA AULA | As dimensões da imagem
A imagem como constitutiva de processos de subjetivação. Coordenadas simbólicas da experiência. A imagem e o simbólico: breve apresentação dos três registros na psicanálise de Jacques Lacan. A imagem como instituidora de afetos. Por que a Psicanálise hoje representa tantas implicações para a arte e o fazer artístico?
Nessa vida em que sou meu sono, eu não sou meu dono. Quem sou é quem me ignora e vive através desta névoa que sou eu todas as vidas que outrora tive numa só vida. FERNANDO PESSOA
Na vida cotidiana, nós temos um Eu. Ou melhor, nós simplesmente somos, de maneira intuitiva, natural. Mas o Eu, de fato é uma função complexa, que é construída ao longo da vida através de processos de identificação. Além disso, esse “eu” não é integrado, homogêneo, sempre igual a si mesmo. É a imagem, e em particular a imagem do “eu”, o elemento que unifica tal heterogeneidade da personalidade, e nos entrega a vivência de certa unidade. Veremos que esta unidade é fruto de um enredo ilusório; em que pese a imagem do “eu” ser decisiva na constituição da “função do Eu”. Desde já, a questão toca ao artista visual: o que é uma imagem? Como se dá a experiência visual que consubstancia o ato criativo, de que falamos no Encontro 02?
Como (e por que) a psicanálise possibilita entender a arte contemporânea?
Foi pesquisando a origem da Psicose (se consta de nossa estrutura, ou, diferentemente, é desencadeada por um evento, um ato singular do sujeito), que o psicanalista Jacques Lacan cria o conceito do “Estádio do espelho”, que respondia a teoria freudiana da passagem do autoerotismo para amor de objeto. A imagem de si promove a passagem entre esses dois momentos – após o que a libido vem se depositar no próprio “eu”, momento queFreud chamou de narcisismo (quando então a libido no bebê se deposita não mais no corpo, não mais em seus próprios órgãos, tampouco nalgum objeto, mas em seu próprio eu). O mito de Narciso encarna perfeitamente esse momento em que o bebê se enamora da própria imagem. Nesta importante fase da constituição subjetiva, a imagem é uma síntese unificadora fundamental:“Para que haja relação de objeto, é necessário que haja anteriormente relação narcísica do eu e do outro” (LACAN, Seminário 2). Desenvolver essa questão explicará o que fundamenta a experiência como intrinsecamente ligada à imagem.
O “Eu” por meio da imagem
A dimensão particular (que “faz parte de”) de nossa personalidade se dá numa dialética entre o que é universal e o que é singular; se dá onde cada um se sabe integrante de um grupo, como sendo “mais um” de uma imagem dentro de um conjunto com o qual se identifica, a partir do qual construirá seu “eu” particular (que Lacan chamava de moi, nuance do francês em oposição ao Je). É no famoso texto de abertura do livro Escritos – “O Estádio do espelho como formador da função do Eu, tal como nos revela a experiência psicanalítica” (1936/1949), Lacan explica essa dinâmica da personalidade e sua gênese.
No início do texto, uma importante diferenciação: o autor “se opõe a qualquer filosofia diretamente oriunda do Cogito”. O cogito, ergo sum cartesiano pressupunha um sujeito auto-evidente (cuja validade é dada por ele mesmo quando pensa), transparente a si mesmo, e racional: “penso, logo existo”. Essa suposta verdade fundadora que Descartes teria chegado sustenta hegemonicamente a consciência e a subjetividade do sujeito moderno e contemporâneo. O eu freudiano, entretanto não funciona assim. Para Freud e para Lacan, o sujeito aparece como uma disjunção entre a história que ele conta no enunciado e a enunciação que produz. Ou seja, uma clivagem entre aquilo que concebo de mim mesmo – o modo pelo qual eu me apresento aos outros e com o qual busco reconhecimento, e aquilo em mim que me é desconhecido, porém denunciado em lapsos, ato-falhos, sonhos, chistes e, principalmente sintomas.
Para representar esse sujeito dividido, Lacan explora a distinção, no idioma francês, entre “Je” e “moi” – sendo o primeiro um lugar de enunciação do sujeito e o segundo a função psíquica que concebe de si mesmo. O moi é aquele que em nós surge de processos de identificação (quando eu me identifico com um estilo de vida, por exemplo, passo a ser re-conhecido por esse estilo); é como o sujeito se vê e como ele se apresenta, numa versão normalmente coerente, correta, seguidor de padrões morais, que respeita as leis, que é justa, etc. O moi se dá por reconhecimento, e seu fim único é esse. (A atenção dita “flutuante” do psicanalista serve para não se deixar enredar pela história contada pelo moi). O Je, contudo é aquele eu que comete absurdos, que deseja perversamente, que age de forma inconfessável – aquilo, afinal, que somos para nós mesmos, e mesmo o que sequer sabemos ser. Tal distinção nos pronomes evidencia a contradição entre o enredo narcisicamente construído – versão psicológica que apresento ao outro (moi), e aquilo que efetivamente produzo a partir de meu lugar de enunciação (Je).
Já nos sintomas da histeria, Freud detectara essa divisão fundamental do sujeito. O sintoma denuncia de forma inequívoca que a “função do eu” não está na consciência (fórmula que sintetizou como “o homem não é senhor de sua própria casa”). Em um de seus primeiros e mais emblemáticos casos – o da “senhora Cecille” (Anna von Lieben), em que aplicou inicialmente o método da “cura através da fala” (que então denominava como “catártico”), Freud constata aquela divisão. Cecille sentia dores lancinantes na face e Freud procurou evocar a cena traumática que teria originado o sintoma, ao que ela
“Descreveu uma conversa que tivera com ele [seu marido] e uma observação dele que ela sentira como um áspero insulto. De repente, levou a mão à face, soltou um grande grito de dor e exclamou: ‘Foi como uma bofetada no rosto’. Com isso cessaram tanto a dor como o acesso” (FREUD, Estudos sobre a neurose, 1976, v. 2, p. 227).
O sintoma é uma forma de expressar, sobretudo corporalmente, algo de excitante – porém insustentável no sujeito; ele é a vazão de uma tendência dentro dele, que ele próprio não reconhece como “seu”. As histéricas eram supostamente tomadas por “forças demoníacas” – algo que lhes tomavam as funções, mas sobre a que acreditavam não possuir ingerência (“Isso tomou conta de mim, mas eu não tenho nada a ver com isso”).
Freud entende então que há duas funções: o eu o isso. Nesse “eu” (moi) eu me reconheço, porém não sou eu – não encontro nele as tendências desiderativas e fantasmáticas do “isso” (Je). Daí que Lacan enuncia o objetivo ético da psicanálise, ao oferecer uma via de acesso para que o sujeito se reencontre nisso: “lá onde estava isso, devo eu advir”.[1]
O Estádio do espelho
Em geral, a partir dos seis meses, a criança é capaz de se reconhecer como imagem – daí o nome “Estádio do espelho”. A “situação exemplar” que Lacan encontra para demonstrar o conceito é o da criança que se se reconhece pela primeira vez em um espelho: aos poucos ela percebe que as coisas se repetem no espelho; tudo lá tem sua duplicata do mundo exterior, com exceção de um ponto. Em dado momento, ela perceberá que esse ponto é ela própria, e tomará contato pela primeira vez com a imagem de si como uma forma integral na aparência, circunscrita e distinta do mundo. Esse reconhecimento representa, segundo Lacan:
(…) a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito. Lacan, O Estadio do Espelho
Essa sentença sintetiza um amplo espectro da teoria lacaniana futura. A criança diante do espelho é uma espécie de ilustração: a imagem aqui não é apenas uma forma na superfície do espelho – a imagem é um lugar. Esse lugar de depósito de investimento emocional dos pais, que a criança se assume, onde ela se “precipita”, ao entender que, ali, sob aquelas coordenadas, pode ser amada; é um lugar onde ela deseja estar, com o qual deseja se identificar para ser reconhecida. A criança se confunde na imagem e de alguma forma se apercebe: “então eu sou isso, eu existo e sou todas essas coisas que projetam em mim, coisas que me identificam, me fazem ser alguém”. O que ela não pode ainda saber é que isso tudo que dá a ela seu núcleo mais fundamental é o núcleo mais exterior – é um lugar de depósito dos pais. Resulta que o reconhecimento desse outro lhe confere identidade.
O bebe é depositário das projeções dos pais – os quais não o amam pelo que é em si, mas pelo que representa de extensão deles próprios. E por tomar esse lugar como certo, como um lugar de verdade essa descoberta, ela será o primeiro corte, uma ferida nesta condição narcísica: é traumático para a criança a descoberta de que a imagem que assumira, ou a posição de objeto na qual se identificara para ser amada, cuidada e investida libidinalmente (moi), é um lugar narcisista imposto pelos pais, uma imagem coordenada por terceiros, por um outro. Lacan aponta, então o caráter “alienante” da imagem, de que se conclui que o sujeito, afinal é uma ficção.
O Estádio do espelho é uma identificação, uma transformação onde o sujeito se assume na imagem – onde irá se situar, de um ponto de vista meramente psicológico, mediado por essa imagem que fundamentalmente é uma alienação, pois toma-se como matriz de si mesmo algo que tem a ver com o depósito libidinal imaginário e fantasmático do outro [no caso, os pais] na construção dele próprio. [2]
A “função do eu” (moi), dada pela matriz simbólica da imagem (único lugar em que o sujeito encontra síntese) não coincide com a “função de sujeito”. Isso garante certo distanciamento em relação a essa alienação fundamental – a essa ilusão de autonomia, que então permitirá fugir à imposição do outro e se colocar na posição de sujeito; não mais sujeito da imagem que fazem dele (e da qual apenas se apropria), mas dos diversos “eus” que o constituem, tudo isso no plano da pluralidade simbólica que organiza o sujeito.
O que a princípio parece mais “meu”, aquilo em que me reconheço, não é meu – a língua materna é uma exemplo claro: me define intimamente, mas pertence ao outro, eu não a crio. A língua, entretanto, por não ser completa e totalizante, permite uma margem de manobra em que eu posso produzir algo efetivamente meu enquanto sujeito (Je) – algo que não me faça totalmente redutível ao campo do outro. Este é o momento em que me dou conta que funciono como discurso do outro, reproduzindo o molde no interior do qual fui constituído.
Concluímos que a “função do eu” é uma síntese psicológica imaginária, onde o sujeito se apropria da linguagem do outro (a começar pela dele próprio no espelho) investida libidinalmente, formando assim um núcleo de si mesmo fundamentalmente depositário das fantasias alheias, mas que constitui a amarração amorosa (libidinal) do sujeito por si mesmo. E este irá se conformar na existência segundo as vicissitudes dessa exposição ao outro. A reapropriação do lugar anterior que ele até então confundira com identificações alheias – ou seja, a significação do lugar “vazio” de sujeito, só será então possível por meio do campo da linguagem.
Voltando ao processo criativo
Não por acaso, reconhecemos na descrição desse processo de subjetivação, um paralelo inevitável com o processo criativo.
O que é uma produção artística, senão uma imagem que busca reconhecimento e identificação no espelho do olhar do outro? Uma busca que ao outro se destina e que só nele é possível? Busca essa tão ilusória quanto a identificação da criança com a imagem do espelho, na qual, reconhecendo-se em projeções alheias, acaba por julgar encontrar a si mesmo?
Saber que a engenharia de nossa subjetividade é estruturada a partir da imagem, proporciona uma dimensão mais ampla de leitura e produção artísticas. Na Poética de Paul Valéry, vimos como a experiência do público dá sentido à obra, incorrendo fatalmente em um desencontro: o artista se empenha em mobilizar as coordenadas precisas para despertar uma experiência no público; seu trabalho, porém, só é realmente concluído quando outro o interpreta (o que obviamente fará a partir de suas próprias vivências), resultando que o destino final do trabalho será inconciliável com seu projeto inicial. Tal “desencontro” distingue a arte de objetos utilitários – os quais nos servem e se encaixam exatamente ao que foram feitos; esse “desencontro” é ainda o que torna a fruição artística sempre renovada, e sempre criativos os seus processos.
Nossa produção poética é vítima dos mesmos condicionantes de nossa personalidade. As apropriações identificativas do moi têm paralelo nas estereotipias com que muitas vezes deixamos nossa expressão criativa se contaminar. A matéria prima da criação não é o artista – sua matéria é o mundo. Mesmo quando se trata de exprimir o que vai mais fundo na sonda de nossa subjetividade, o que encontramos é o outro, ou seja: como nosso eu é afetado pelo alheio, e como somos constituídos, na superfície por identificações, porém no fundo por um estranhamento em relação a nossa própria imagem. Além da compreensão dos processos de subjetivação – fundamentais para o artista, a escuta e a atenção flutuante do psicanalista nos ensina a procurar o que há de mais nosso, para além das identificações tão presentes quando produzimos arte.
Referências
SAFATLE, V. Introdução a Jacques Lacan. Belo Horizonte, Autência Editora, 2018.
ŽIŽEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de janeiro: Zahar, 2010.
PODCAST Desver (Ouça no Spotify aqui)
CHRISTIAN DUNKER (Assista o Canal Youtube aqui)
Além da bibliografia acima, este texto é tributário das exposições de Mário Eduardo Pereira nos Seminários O Estádio do espelho como formador da função do eu, e O conceito de Inconsciente no Seminário 11 de Lacan – assim como das aulas do professor Saulo Durso Ferreira, ambos altamente recomendáveis!
[1] Exposição de Mário Eduardo Pereira no Seminário O Estádio do espelho como formador da função do eu. [2] (Idem)
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