Gustavot Diaz
SINTOMAS DA ERA DA IMAGEM: VOYEURISMO E CEGUEIRA:
Sociedades que atravessam medos endêmicos, invariavelmente apresentam sintomas. Qual será o sintoma do nosso medo, do mal provisório que infesta os ares inaugurais do século XXI, na esteira de uma crise social estrutural? Penso se este não será, talvez o voyeurismo – uma espécie de “perversão escópica” que nos tornou cegos para outros sentidos, e cada vez mais avaliza a visão como detentora dos poderes de conhecimento, crença e validação.

SID WATTERS, “Mask”, 2016 | óleo sobre papel
Falo de como a função da imagem está inflacionada. E falar em imagem, claro, é falar de figuração. A Arte Contemporânea – conhecida já por sua tradicional enigmática, criticada por seu hermetismo, tem como causa de sua ininteligibilidade justamente a extinção da imagem figural em prol de procedimentos conceituais. Mais do que isso, a Arte Contemporânea desabilita a própria natureza da “representatividade”.
Entretanto, a “representação” cresce socialmente; aumenta seu valor na economia dos signos que orientam quase que a totalidade da experiência contemporânea: filmes, séries, plataformas de streaming (parte indissociável hoje da vida de milhões), redes sociais (na verdade, redes de permuta de prestígio onde o valor de troca é a imagem), os meme’s que movimentam a política – e agora, com a pandemia, o reinado dos monitores em geral.
Como consequência, a “representação” (tão criticada na arte), encontra uma especulação e sobrevalorização sem precedentes no seio da cultura. Aqueles que, como muitos, “não entendem” a Arte Contemporânea, saibam que o que ela promove, desde o início do século XX (mais precisamente, desde 1917 com o urinol A Fonte, de Marcel Duchamp) é um questionamento da função narrativa das imagens. Porque uma imagem é um texto visual; e esse texto, uma concatenação arbitrária de códigos convencionados. Em duas obras excepcionais, Jean-Léon Gérôme (pintor, contudo criticado por contribuir com a narrativa de consolidação do imperialismo europeu) ilustra exemplarmente essa coordenação “ideológica” que estrutura as imagens:

JEAN-LÉON GÉRÒME, “Mercado de escravos em Roma”, 1884 | Óleo sobre tela (92 x 74cm)
Alterando o ponto de vista da mesma cena, o artista nos coloca – ora sob a perspectiva dos mercadores de escravos, ora sob a da própria escrava leiloada. Uma imagem é isso: ela implica uma retórica que se fundamenta em determinado discurso – normalmente é guiado pelo código vigente, hegemônico da sociedade (o código de manipulação do poder). Sempre oposta ao regime do capital, a Arte Contemporânea em geral visa um recuo dessas construções ideológicas, instaurando o silêncio em lugar do acúmulo, a reflexão abstrata ao invés da condução coercitiva do olhar, o vazio prioritariamente ao ruído informacional do mundo. É assim que nos espaços onde esta arte é apresentada vemos, desde minimalismos e inscrições que passam quase despercebidas, até o tosco, o bizarro, o burlesco, o escatológico; a ironia no lugar do apelo indulgente das imagens super-editadas das revistas, redes sociais, publicidade, mídia, etc. (ou seja, a linguagem que o capitalismo normalmente emprega visando a coação emocional). Por isso, a “proposição” em lugar da adequação aos códigos vigentes; a “performance”, gerando experiências não convencionais onde antes a imagem realista proporcionava experiências banais; o ready made impermanente, ilustrando que a poética habita mesmo o universo mais prosaico…

JEAN-LÉON GEROME, “Mercado de escravos romano”, 1884 | Óleo sobre tela (64 x 57cm)
Porém, eu creio que aquela função de “representação” da imagem seja incoercível. Talvez por isso uma disputa “por dentro” do terreno das imagens seja mais eficaz na luta contra a hegemonia. Tal função é tão remota que, ao refletir sobre o tema, lembrei-me de uma fotografia emoldurada em minha sala. Chama-se “Passaporte” e retrata uma espécie de miniatura de máscara de bronze oriunda do povo Dan (Costa do Marfim), que possuía o hábito de produzir esses pequenos rostos, usados em suas migrações como identificação da sua etnia de origem.
Alguns objetos também se revestem dessa função: permitem que seus donos atravessem territórios regidos por uma jurisdição diferente da sua. É o caso do “récade” (bastão) para os Fon, ou da “manilha” (dinheiro) para muitos povos da África Central e Ocidental.[1]
Essas máscaras, eram sinônimos de prestígio, e tidas, portanto, como “moeda” cujo valor estava associado à figuração. Nossos passaportes e documentos de identificação hoje em dia ainda são fundados na correlação mimética da representação. Este é apenas um exemplo de como é antiga a atribuição de valor à imagem, que hoje atinge o estatuto de autoridade absoluta.

Deslocamentos do povo Dan (Costa do Marfim), “PASSAPORTE” | miniatura em bronze
Inevitavelmente, temos sido movidos por elas – inclusive os artistas contemporâneos, durante o isolamento pandêmico. As imagens são mais do que nunca nossa mediação com o mundo, e condição de nossos afetos. A que se destina isso senão a um único sintoma – o de fazer-nos voyeurs da vida alheia, e atores (nem sempre protagonistas) em nossa própria vida, fetichistas mascarados de um prazer escópico? Encerro lembrando da mais estranha das máscaras – a única que inviabiliza a representação: a máscara do carrasco. Ele a veste para o exercício de seu ofício trágico por ser ela o contrário de uma face: assim o capuz retira seu laço mais imediato com a humanidade, facultando a visão da única entidade capaz de executar a ordem do assassínio: uma entidade não-humana. Por detrás dos monitores, com a câmera desligada, não vestimos todos um pouco a imagem do carrasco?
Imagem da capa:
GUSTAVOT DIAZ, “PER(VER)SOMATÓGRAFO: 120 dias de Sodoma III”, da série JANELAS PARA NÃO VER, 2020 | carvão e papel sobre Montval (50x65cm)
____________________
[1] Foto e texto extraídos do catálogo da exposição “Etnos: faces da diversidade”. Curadoria de Marcelo Dantas.
.
.
.
.
.
.
.
.
#discurso #voyeurismo #Representação #JeanLéonGérôme #ideologia #IMAGENS #pandemia #narrativa #artecontemporânea #Géròme