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  • Foto do escritorGustavot Diaz

TINTA BRUTA: o desenho realista do cinema brasileiro contemporâneo

A tag “cinema realista” parece sempre abrigar filmes violentos, abordagens brutais ou cruas. A impressão não é casual e os adjetivos definem bem a estética realista. Responde também o porque da vida só parecer real diante de algo inesperado: uma paixão, um acidente, uma perda. Justamente quando perdemos as ficções simbólicas que dão ordem à realidade – quando o cotidiano sai do normal, é que podemos ver a vida como ela é. Por quê? Porque a eliminação das coordenadas simbólicas que guiam a experiência nos permite focar a vida em sua brutalidade primitiva, seu Real obsceno. Não é exatamente que a vida “na realidade” é brutal: é que a ausência de ficções só pode revelar uma dimensão traumática.

Obsceno é a violência, ou seja, a vivência não elaborada. Sabemos que o cinema funciona exclusivamente por meio da edição de cenas, cortando e justapondo imagens: ele replica, assim o modus operandi da própria vida, cujas vivências vão se tornando experiências agregadas em nossa subjetividade, na medida em que são mediadas por imagens, ou “postas em linguagem”. Mas, enquanto o diretor pode simplesmente descartar os cortes que ficam “de fora”, o sujeito não pode. O que não é expresso de alguma forma (seja por meio da fala, pela escrita, ou outro qualquer tipo de expressão), reaparece como angústia, permanece como trauma, retorna como sintoma.

O filme Tinta Bruta (2018), dirigido pelos gaúchos Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, consegue representar de modo eloquente esse processo de elaboração, e se inscreve em grande estilo na história da ficção realista do Rio Grande do Sul.

Onde o realismo é mais real do que o real?

Tinta Bruta me revelou o esvaziamento da capital. Estou aqui há apenas quatro anos, e talvez por isso não havia podido perceber. Porto Alegre se esvazia, as pessoas vão embora, os laços se fazem a duras penas e se desfazem. Numa segunda sessão do filme ocorrida no Capitólio, desta vez com debate público com os diretores, tive por eles próprios confirmada minha impressão sobre o tal esvaziamento. Mas que vazio é esse?

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Imagens de divulgação


O protagonista Pedro (interpretado pelo talentoso Shico Menegat) não consegue criar “pontes entre os arquipélagos” – para usar a expressão com que Veríssimo, ao final do Tempo e o Vento definiu o sentimento do personagem Floriano Cambará, hesitante e tímido escritor (último grande personagem desta obra cuja profundidade talvez consiga dimensionar ainda hoje o kunstwollen da cultura gaúcha): esse sentimento é o isolamento. O Tempo e o Vento trata, aliás, da história da urbanização do Rio Grande do Sul – processo “civilizatório” onde certo capitão Rodrigo cede lugar ao bisneto, portador de uma “cultura de oitiva”, mas homem de decisão, de intensos afetos e paixões, e que toma parte ativa nos acontecimentos: o Dr. RodrigoTerra Cambará (sem dúvida personagem central do romance). A última parte da epopeia é protagonizada por seu filho Floriano, um intelectual urbano com mestrado nos EUA.

Este desenlace do processo de ilustração coincide com um novo tipo de subjetividade caracterizada por uma condição complexa que atinge em cheio o presente e pode ser a chave de um paralelo revelador entre o personagem de Veríssimo e o protagonista de Tinta Bruta: o excesso de sofisticação e construção subjetiva, a multiplicidade de experiências mundanas, leva-os a um permanente deslocamento, um não-pertencimento a parte alguma – onde o afeto não se filia a nenhuma instância clara e redunda em isolamento e indecisão (estatuto da experiência moderna já formulado por Walter Benjamin). Não à toa, Floriano Cambará decide pela escrita – ponte com que procura reunir-se ao seio da família, explicando-a pela palavra, mediando, desde as mais mínimas situações, pela dimensão simbólica da narrativa (na diegese do texto, é esse personagem quem, enfim escreve o livro que estamos lendo). Antes de prosseguir, recomendamos também o filme anterior da dupla: Beira-mar (2015), que reverbera questões semelhantes, embora com enfoque bastante diverso.

Como o cinema faz com que vida se torne mais real?

Quando mudei para cá, diziam-me: “portoalegrense não é gaúcho”. Hoje eu entendo. Floriano ainda está próximo do rio-grandense atual, mais especificamente do porto-alegrense: o gaúcho cuja formação intelectual e subjetiva afastou-o de sua própria história, da tradição, da sua saga familiar. Esse é o conceito de “trânsfuga” com que Pierre Bourdieu definia o filho diplomado de pais sem estudo que perde a empatia familiar e procura, como Floriano e Pedro, ilhados, as pontes para o mundo insensível do continente. Porém, mais do que a semelhança, uma diferença fundamental entre os dois personagens é ainda mais esclarecedora: Pedro não consegue construir pontes, pois seus afetos são ilhas flutuantes que migram; as pontes pênseis do mundo contemporâneo albergam apenas ilhas móveis de areia movediça.

O personagem de Tinta Bruta (casualmente homônimo do patriarca da família Terra Cambará – Pedro Missioneiro) é emoldurado por uma Porto Alegre sem alegria, cinza, quadrada, cujos habitantes se mostram anônimas silhuetas por detrás de grade e janelas. Tudo isso constitui uma moldura não apenas espacial, mas também emocional da cidade. Aqui é inevitável a lembrança de outro filme montado na capital, igualmente realista e poderoso: Cão sem dono (2007), dirigido pela dupla Beto Brant e Renato Ciasca (com roteiro de Marçal Aquino inspirado no livro de Daniel Galera). É também a história realista e brutal de um jovem morador do centro, com laços afetivos rotos, cuja grande paixão vai embora.

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Imagens de divulgação


Pedro perde-se da narrativa ficcional que nos vincula afetivamente na existência. Ficção que nos sustenta. Sua mãe morreu quando ele era criança, recém foi expulso da faculdade e sofre um processo por agredir um colega do qual era vítima de bullying contra sua sexualidade (Pedro é homossexual), e agora a irmã – único laço afetivo forte – parte para outra cidade. A avó, que também se vai, é ainda uma boia salva-vidas. Mas quando os laços efetivamente se rompem, advém o pânico, e Pedro tem uma crise dentro do apartamento, alheado em sua própria ilha.


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Não é apenas essa dimensão que se rompe em sua vida: a dimensão simbólica mesmo se desfaz, sem profissão, não encontra senão trabalhos precários. A via é dupla, claro. Os processos afetivos se dão inicialmente na dialética com o outro: não é apenas o laço de fora que se rompe, Pedro também não tece; é um jovem de palavra difícil e cenho franzido. Mas possui um escape: o imaginário.

O homem contemporâneo real só se dá a ver através do virtual

Tinta Bruta revela uma dimensão profunda da contemporaneidade. Dentro do quarto, Pedro “encena” para uma webcam conectada a um site gay onde os internautas pagam por sua performance, encomendada segundo suas próprias fantasias. Sua performance é famosa e se distingue no site: com o nickname “garoto neon”, enquanto dança para os internautas, ele se pinta com tinta colorida que brilha na luz negra da cena (achado genial dos diretores que simboliza o imaginário ideal de como nos “pintamos” para o outro).

Acontece que é na encenação que Pedro pode realizar verdadeiramente um traço fundamental de sua personalidade, talvez a mais profunda.

As redes sociais aproximam os distantes e afastam os próximos. Não é casual que “www” signifique world wide web, “grande teia mundial” aos poucos enredando tudo e todos. Mas é bom lembrar a definição de Guimarães Rosa: “rede é uma porção de buracos presos por barbante”. Ele faz a descrição da rede do ponto de vista do peixe: é pelos buracos que se vê a verdade da coisa (“Vejo tua vaidade pelos buracos de tua túnica!”, assim Sócrates denunciava Arístipo, que se fingia de humilde). A verdade “na frente” das aparências e simulações virtuais explica melhor o sujeito contemporâneo.

As redes emulam virtualmente uma conexão humana que não conseguimos efetivar na realidade cotidiana. Não por falência do convívio social, mas devido ao fato de que justamente a base das relações civilizadas é a mediação simbólica impondo sistematicamente sua violência sobre os instintos, aprisionando-os sob as formas convencionadas da linguagem. Como o mundo virtual é uma “mídia”, ou seja, oferece uma mediação em si, nele realizamos fantasias, contatamos quem não teríamos coragem de olhar diretamente nos olhos, expressamos modos de vida, pensamentos e opiniões que nem sempre assumiríamos fora dele. Não é apenas a comodidade do anonimato o que garante essa audácia. É o sentido de que a web já é por si só mediação suficiente para introduzir ideias dado o caráter representacional que elas assumem no mundo virtual. Quer dizer, “estou apenas postando na web, não estou efetivamente materializando tal coisa” (daí que muitos pensam que agressões na web, por exemplo, não constituem violência, pois são apenas representações, apenas escrita, imagens, memes, etc).

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Imagens de divulgação


Mas é através do imaginário oferecido pelo mundo virtual que Pedro pode constituir e sustentar sua experiência mais autêntica de ser e estar-no-mundo. Na atuação diante da câmera ele revela sua sexualidade, sua erótica, seu desejo de ser objeto de desejo. Temos essa interpretação autorizada na cena final: nos últimos segundos de filme, sem nenhuma perspectiva de trabalho, sem o emprego no site e após a despedida do último amante com quem ainda nutria um laço de afeto, Pedro, ao invés de se desesperar, dança pela primeira vez em público, pintando o corpo imaginariamente como se estivesse fechado em seu quarto ainda se exibindo diante da webcam. Não fica claro se se trata de uma alucinação; mas parece que não:

A tinta ficcional “que já está nele mesmo” (segundo o diretor Filipe Matzembacher), indica a travessia (articulação imaginária) de superação de seu isolamento: a ponte com o outro está feita.

Ficção em paralaxe

A grande obra de Veríssimo sintetiza a própria literatura regional. Um estudo mais abrangente que traçasse em paralelo os personagens da ficção gaúcha constataria a sucessiva desconstrução do “centauro do pampa”, expressão de José de Alencar que Caldre e Fião empregou no primeiro romance da literatura do Rio Grande, “A Divina Pastora” (1847). Tal paralelo passaria pelo anti-herói Camilo Mortágua de Josué Guimarães (1980), este muito mais próximo do mais que contemporâneo Pedro de Tinta Bruta – o gaúcho sem plumas e sem penacho, desfalcado de todo o ideal folclórico que oprimiu o RS de falsa valentia e brio.

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Imagens de divulgação


Camilo, que pertenceu à aristocracia rural dos caudilhos, encontra-se completamente arruinado quando o golpe militar instituiu a Ditadura Militar no Brasil (1964). Buscando uma fuga da pesada realidade, ele vai ao cinema, mas, desesperadoramente encontra sua própria vida passando na tela, desde as primeiras recordações da infância. Emocionado e sem saber explicar o que está ocorrendo, Camilo apenas segue diariamente até o cinema, fascinado, onde assiste capítulos de sua história representados só para ele. O “filme” avança até o dia de sua morte, prefigurada na tela momentos antes da sua morte real, dentro da própria sala de cinema, quando é atingido por uma bala perdida e o livro termina.

Esta alegoria quase surrealista concretiza a metáfora de que “a vida é um filme”: num olhar de fora, Camilo tem o privilégio de distinguir entre o que foi real e o que não passou de imaginário em sua vida. Sua “vida real” posta em cena passa, então a ser a própria fuga da realidade presente. Em Tinta Bruta, diferentemente, Pedro – o gaúcho sem aura, encontra no imaginário de sua dança para a webcam não uma fuga do real, mas justamente sua entrada nele. O mundo virtual garante experiências vívidas contra uma existência cotidiana constrangida pelo vazio de afetos. Este é o modo contemporâneo de se construir pontes entre os arquipélagos do desejo.

 

TINTA BRUTA 2018 / Filme / Drama Escrito e dirigido por Filipe Matzembacher e Marcio Reolon Produção: Avante Filmes e Besouro Filmes Distribuição: Vitrine Filmes

 


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FLORIANÓPOLIS | Abril 2019 | O Sítio Lagoa

SÃO PAULO |  Abril 2019  |  SESC Pompeia

 

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